À medida que esfriam os escombros do prédio que desabou em São
Paulo, amorna também o interesse do grande público pelo tema da política
habitacional, que retorna ao seu lugar de tópico de especialistas. Mas
não se engane: toda vez que o leitor ler manchetes como "omissão da
prefeitura na fiscalização de vans na Zona Oeste", "milícias controlando
venda de gás e TV a cabo", "mortos em operação policial na favela",
"tiroteios fecham Linha Amarela ou Vermelha", estará lendo as formas
mais desenvolvidas da imoral omissão do Brasil sobre o planejamento da
moradia e do acesso aos benefícios da urbanidade.
Além
de termos sido um dos últimos países a abolir a escravidão, ainda somos
a rara grande nação que não implementa gestão urbana organizada em
função do ato de morar como direito humano essencial.
Mesmo
com vasta legislação à disposição, como o Estatuto da Cidade (2001), ou
mesmo a criação do Ministério das Cidades (2003), ou a Lei do
Saneamento Básico (2007), ou a Lei da Assistência Técnica (2008), ou
agora, o Estatuto da Metrópole (2015), nada é executado. Em compensação,
a lei que criou o Regime Diferenciado de Contratação (2011), de autoria
da senadora Gleisi Hoffmann, que é uma panacéia para as empreiteiras,
tem ampla, vasta e irrestrita aderência pelos governos, em todos os
níveis da federação. O poder executivo é muito eficiente para
privilegiar poucos, e incompetente para ampliar direitos urbanísticos.
Escrevo
de Cambridge, nos Estados Unidos, onde vim participar de um seminário
em Harvard. Aproveitei e fui ao MIT assistir um dia de conferências no
seminário "Housing+", ou "Habitação+", promovido pelo Centro de
Urbanismo Avançado da universidade. Em poucas horas conheci experiências
na Colômbia, em Ruanda, na China e na Guiana. Ambas universidade
tiveram papel decisivo na ampliação do conhecimento sobre políticas
habitacionais nos anos 60 e 70. O arquiteto e antropólogo carioca Carlos
Nelson Ferreira dos Santos foi pesquisador no MIT e realizou
contribuição importante para a mudança de mentalidade sobre a abordagem
de áreas favelizadas, justificando a relevância da urbanização destas
áreas e a necessidade de atuação técnica e projetual mais próxima das
pessoas. Mais ao nível do chão, menos pela perspectiva de "olhos de
pássaro".
Na verdade, o tema da habitação digna
está no foco das cidades do mundo desenvolvido, e suas lideranças
políticas, desde a Revolução Industrial que causou grande inchaço
populacional. E nunca saiu da prioridade.
Londres
saltou de 1 milhão de pessoas em 1800 para quase 7 milhões no final do
século XIX. Hoje são 8,8 milhões de pessoas. O Censo de 1900 do Rio de
Janeiro revela pouco mais de 800 mil almas. Em 2000, já seríamos 5,8
milhões de habitantes no final do século XX. Contudo, mesmo enfrentando
doenças endêmicas, violência e precariedade da vida urbana, não
empreendemos o mesmo esforço que os britânicos na construção de
políticas públicas para a moradia. Se nossa arquitetura influenciou o
mundo como fato estético nos anos 40 e 50, não conseguimos, no sentido
inverso, nos sensibilizar com as práticas de oferecer subsídios e
fomentos para a habitação que as economias mais capitalistas e liberais
do mundo fazem desde sempre.
Depois do advento
da industrialização, o período entre guerras iria novamente demandar
esforço técnico e político para resolver o desafio da produção de casas
em larga escala e a racionalização da arquitetura iria motivar os
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAM, que se
reuniram de 1928 até 1958, e mudaram o modo de organização dos
territórios urbanos pela disseminação no mundo dos preceitos do
zoneamento funcional, da Carta de Atenas de 1933, separando o lugar de
morar do lugar de trabalhar.
Brasília é o suprassumo mundial desses conceitos.
Entretanto,
se no Brasil sempre lidamos com muita facilidade e espantosa
criatividade para o design de edifícios habitacionais, com frescor e
ousadia sem igual, raramente conseguimos adotar e continuar gestão
pública que fornecesse meios, especialmente para os trabalhadores e os
pobres, para ter acesso à cidade. Escravos libertos não contaram com
moradia, como ocorreu nos Estados Unidos, imigrantes urbanos não
contaram com moradia digna, como aconteceu na Europa, e hoje, jovens não
contam com subsídio para aluguel, como ocorre no Chile, por exemplo.
Mas somos especialistas em massacrar vidas humanas na cidade.
O
que o mundo desenvolvido percebeu há muito tempo é que as falhas de
mercado que a cidade cria ao ficar mais interessante, aumentando a
demanda sobre a oferta, torna a terra urbana e os aluguéis mais caros, e
que para funcionar bem, a cidade precisa que trabalhadores estejam
dentro dela, não fora. Portanto, em lugares como Nova York, São
Francisco, Londres, Paris, Roma, Madri, Lisboa, os governos usam seu
poder de regulação, o zoneamento, para garantir espaço para os
vulneráveis; estimulam o mercado imobiliário, na produção e pelo
subsídio habitacional direto à população; combatem prédios ociosos; e
investem em transporte público.
Fazem tudo isso pois sabem que morar é um verbo que se conjuga todo dia no bom urbanismo.
(Fonte: ADEMI RJ)
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