domingo, 6 de maio de 2018

Morar é um verbo

Foto: Sérgio Neves/ Estadão

O Globo, Artigo, Washington Fajardo, 05/mai/2018

À medida que esfriam os escombros do prédio que desabou em São Paulo, amorna também o interesse do grande público pelo tema da política habitacional, que retorna ao seu lugar de tópico de especialistas. Mas não se engane: toda vez que o leitor ler manchetes como "omissão da prefeitura na fiscalização de vans na Zona Oeste", "milícias controlando venda de gás e TV a cabo", "mortos em operação policial na favela", "tiroteios fecham Linha Amarela ou Vermelha", estará lendo as formas mais desenvolvidas da imoral omissão do Brasil sobre o planejamento da moradia e do acesso aos benefícios da urbanidade.

Além de termos sido um dos últimos países a abolir a escravidão, ainda somos a rara grande nação que não implementa gestão urbana organizada em função do ato de morar como direito humano essencial.

Mesmo com vasta legislação à disposição, como o Estatuto da Cidade (2001), ou mesmo a criação do Ministério das Cidades (2003), ou a Lei do Saneamento Básico (2007), ou a Lei da Assistência Técnica (2008), ou agora, o Estatuto da Metrópole (2015), nada é executado. Em compensação, a lei que criou o Regime Diferenciado de Contratação (2011), de autoria da senadora Gleisi Hoffmann, que é uma panacéia para as empreiteiras, tem ampla, vasta e irrestrita aderência pelos governos, em todos os níveis da federação. O poder executivo é muito eficiente para privilegiar poucos, e incompetente para ampliar direitos urbanísticos.

Escrevo de Cambridge, nos Estados Unidos, onde vim participar de um seminário em Harvard. Aproveitei e fui ao MIT assistir um dia de conferências no seminário "Housing+", ou "Habitação+", promovido pelo Centro de Urbanismo Avançado da universidade. Em poucas horas conheci experiências na Colômbia, em Ruanda, na China e na Guiana. Ambas universidade tiveram papel decisivo na ampliação do conhecimento sobre políticas habitacionais nos anos 60 e 70. O arquiteto e antropólogo carioca Carlos Nelson Ferreira dos Santos foi pesquisador no MIT e realizou contribuição importante para a mudança de mentalidade sobre a abordagem de áreas favelizadas, justificando a relevância da urbanização destas áreas e a necessidade de atuação técnica e projetual mais próxima das pessoas. Mais ao nível do chão, menos pela perspectiva de "olhos de pássaro".

Na verdade, o tema da habitação digna está no foco das cidades do mundo desenvolvido, e suas lideranças políticas, desde a Revolução Industrial que causou grande inchaço populacional. E nunca saiu da prioridade.

Londres saltou de 1 milhão de pessoas em 1800 para quase 7 milhões no final do século XIX. Hoje são 8,8 milhões de pessoas. O Censo de 1900 do Rio de Janeiro revela pouco mais de 800 mil almas. Em 2000, já seríamos 5,8 milhões de habitantes no final do século XX. Contudo, mesmo enfrentando doenças endêmicas, violência e precariedade da vida urbana, não empreendemos o mesmo esforço que os britânicos na construção de políticas públicas para a moradia. Se nossa arquitetura influenciou o mundo como fato estético nos anos 40 e 50, não conseguimos, no sentido inverso, nos sensibilizar com as práticas de oferecer subsídios e fomentos para a habitação que as economias mais capitalistas e liberais do mundo fazem desde sempre.

Depois do advento da industrialização, o período entre guerras iria novamente demandar esforço técnico e político para resolver o desafio da produção de casas em larga escala e a racionalização da arquitetura iria motivar os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAM, que se reuniram de 1928 até 1958, e mudaram o modo de organização dos territórios urbanos pela disseminação no mundo dos preceitos do zoneamento funcional, da Carta de Atenas de 1933, separando o lugar de morar do lugar de trabalhar.

Brasília é o suprassumo mundial desses conceitos.

Entretanto, se no Brasil sempre lidamos com muita facilidade e espantosa criatividade para o design de edifícios habitacionais, com frescor e ousadia sem igual, raramente conseguimos adotar e continuar gestão pública que fornecesse meios, especialmente para os trabalhadores e os pobres, para ter acesso à cidade. Escravos libertos não contaram com moradia, como ocorreu nos Estados Unidos, imigrantes urbanos não contaram com moradia digna, como aconteceu na Europa, e hoje, jovens não contam com subsídio para aluguel, como ocorre no Chile, por exemplo.

Mas somos especialistas em massacrar vidas humanas na cidade.

O que o mundo desenvolvido percebeu há muito tempo é que as falhas de mercado que a cidade cria ao ficar mais interessante, aumentando a demanda sobre a oferta, torna a terra urbana e os aluguéis mais caros, e que para funcionar bem, a cidade precisa que trabalhadores estejam dentro dela, não fora. Portanto, em lugares como Nova York, São Francisco, Londres, Paris, Roma, Madri, Lisboa, os governos usam seu poder de regulação, o zoneamento, para garantir espaço para os vulneráveis; estimulam o mercado imobiliário, na produção e pelo subsídio habitacional direto à população; combatem prédios ociosos; e investem em transporte público.

Fazem tudo isso pois sabem que morar é um verbo que se conjuga todo dia no bom urbanismo.
(Fonte: ADEMI RJ)

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