Em 1897, o conflito de Canudos, no sertão baiano, fez a Câmara mudar os nomes de seis ruas do centro de São Paulo
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(Guilherme Gaensly/Arquivo Público do Estado de São Paulo) |
Fausto Salvadori Filho | fausto@camara.sp.gov.br
Não se falava em outra coisa. Em 1897, a guerra do Exército brasileiro contra um arraial pobre do sertão baiano era tema de tudo quanto fosse roda de conversa. “É um zunzum que ensurdece, / Um vaivém que nos põe mudos, / Desde que o dia amanhece / Até que acaba: – Canudos!”, escreveu um poeta no jornal A Bahia. Políticos e intelectuais de todas as tendências debatiam o conflito nas tribunas e nos jornais, editoras vendiam mapas do arraial “nitidamente litografados” e lojas, em seus anúncios, usavam o nome Canudos para vender de sapatos a vestidos de seda.
Os habitantes do arraial, comandados pelo líder religioso Antônio Conselheiro, já haviam rechaçado duas pequenas expedições enviadas para combatê-los, entre outubro de 1896 e janeiro de 1897. Mas o que fez o pânico se espalhar por todo o País foi a derrota da terceira expedição, uma força de 1.300 homens comandada por um dos heróis do Exército republicano, coronel Moreira César, o Corta-Cabeças.
Em 10 de março, seis dias após a morte de Moreira César em Canudos, a guerra virou assunto na Câmara Municipal de São Paulo. Além de suspender sessão e fazer voto de pesar, os vereadores decidiram alterar os nomes de seis ruas do centro para homenagear militares mortos em Canudos e heróis da República da Espada.
“Deante do inesperado acontecimento que acaba de enlutar a Patria Brazileira e o glorioso exercito nacional, pela morte de seus bravos soldados no combate com as hordas monarchistas nos sertões da Bahia, indicamos que a Camara Municipal de S. Paulo suspenda a sessão de hoje, lançando na acta um voto de pesar e protesto ao chefe da nação, por intermédio do presidente [equivalente a governador] d’este Estado, a sua franca solidariedade e apoio incondicional em todos os terrenos em prol da Republica”, afirmaram os vereadores (grafia da época).
Nem tão heroicos
Antes do encerramento dos trabalhos, a Câmara aprovou a mudança dos nomes das Ruas Direita (rebatizada Marechal Floriano Peixoto) e São Bento (Coronel Moreira César), duas das mais conhecidas vias de São Paulo. Na sessão seguinte, no dia 17, o Plenário aprovou propostas dos vereadores Gomes Cardim, Alfredo Zuquim e Roberto Penteado que rebatizavam as Ruas do Quartel (que virou Cabo Roque), João Alfredo (General Carneiro), da Esperança (Capitão Salomão) e das Flores (Coronel Tamarindo), “em homenagem aos patriotas e heroicos soldados assassinados covardemente na cruzada de Canudos, defendendo a Republica”.
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CAPTURADO – Soldados do Exército levam prisioneiro para execução (Flávio de Barros/Museu da República) |
Em Canudos, muito do fracasso da expedição foi culpa do salto alto com que o coronel entrou na batalha, desprezando os inimigos ao ponto de dizer “vamos almoçar em Canudos” para seus comandados pouco antes de invadir o arraial. O coronel Tamarindo, que assumiu o comando da terceira expedição após a morte de Moreira César, entrou para a história ao falar, diante da batalha perdida, outra frase memorável: “É tempo de murici, cada um cuide de si…”.
Já o Cabo Roque era celebrado como o herói que teria sido morto enquanto protegia o cadáver de Moreira César dos jagunços de Canudos. O heroísmo durou até o cabo ser descoberto, muito vivo, e confessar que, durante o conflito, havia simplesmente largado o corpo do comandante no mato e saído correndo, “vítima da desgraça de não ter morrido, trocando a imortalidade pela vida”, nas palavras de Euclides da Cunha. O personagem teria inspirado o dramaturgo Dias Gomes a criar o Cabo Jorge, protagonista da peça O Berço do Herói, de 1963, um personagem que passa a ser considerado herói após ser falsamente dado como morto. Em 1985, Dias Gomes reaproveitaria o mesmo mote na trama da sua telenovela Roque Santeiro. Por outro lado, ninguém até hoje desmentiu a história do martírio do Capitão José Salomão da Rocha, que “tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara”, também segundo Euclides da Cunha. Tanto que seu feito é lembrado em um verso da Canção da Artilharia do Exército: “Abraçado ao canhão morre o artilheiro”.
Os outros dois homenageados pela CMSP nunca pisaram em Canudos, mas foram lembrados como símbolos da República da Espada (1889-1894), período em que o recém-proclamado regime republicano, comandado por militares, esmagou uma série de revoltas contra o governo federal. O símbolo dessa fase foi o marechal Floriano Peixoto, segundo presidente do Brasil (1891-1894). Os soldados que enfrentavam Canudos, segundo Euclides da Cunha, “tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória”. O outro homenageado, general Gomes Carneiro, foi encarregado por Floriano de combater a Revolução Federalista no Paraná, onde morreu resistindo, com 600 homens, a um cerco de mais de 3 mil revoltosos, no episódio conhecido como Cerco da Lapa.
O fim de canudos
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SOBREVIVENTES – Mulheres e crianças aprisionadas em Canudos (Flávio de Barros/Museu da República) |
Como relata a pesquisadora Walnice Nogueira Galvão em No Calor da Hora, várias matérias jornalísticas retratavam Canudos como um grupo com ramificações em Nova York e Paris que pretendia restaurar a monarquia no Brasil e pediam sua destruição. Canudos era “uma horda de mentecaptos e galés”, segundo Rui Barbosa, considerado o principal intelectual brasileiro, ou uma “vergonha que cumpre extinguir de pronto”, de acordo com um manifesto de acadêmicos baianos. “Em Canudos não ficará pedra sobre pedra”, prometia o presidente da República, Prudente de Morais.
A promessa foi cumprida com o envio, em abril, de uma quarta expedição contra Canudos, com mais de 5 mil homens, comandados pelo general Artur Oscar. Em outubro, já haviam destruído o arraial. Não houve rendição. O conflito acabou quando os soldados mataram os últimos defensores de Canudos: um velho, dois adultos e uma criança. “E assim, com essa mobilização geral da opinião feita pelos jornais, acompanhando as operações bélicas, a Guerra de Canudos foi, afinal, ganha e o arraial arrasado a dinamite e querosene juntamente com quem não quis se render. Os prisioneiros foram todos degolados, restando apenas algumas poucas centenas de mulheres e crianças que foram dadas de presente ou vendidas. A República estava salva”, resume Walnice.
Com o fim de Canudos, alguns dos setores que haviam pedido a destruição do arraial começaram a perceber que, da mesma forma como muitos militares não foram os heróis que se imaginava, os canudenses também não eram o grupo de conspiradores interessados em derrubar a República que a mídia e os políticos haviam retratado. O arraial era apenas uma comunidade de gente pobre, que, embora houvesse crescido a ponto de virar a segunda maior cidade da Bahia, mantinha-se à margem de todos os poderes da época, fosse do Estado, da Igreja ou dos grandes fazendeiros – e que talvez por isso incomodasse tanto.
Favelas
Os vereadores de São Paulo voltaram a tratar de Canudos na sessão de 27 de outubro, quando Roberto Penteado propôs “um voto de congratulação com o general Arthur Oscar, pela victoria de Canudos, com as forças em operações e com o brioso 1º batalhão de S. Paulo pela bravura com que revelou o seu patriotismo”. Dessa vez não houve a mesma unanimidade. Vereadores propuseram que a congratulação fosse feita à “Patria Brazileira” e a “todos os altos poderes da nação”. Sem acordo, a discussão foi retomada na sessão seguinte, em 3 de novembro, quando o vereador João Bueno afirmou que, “quando se iniciou a questão, teve que manifestar o seu descontentamento contra a degolação dos prisioneiros em Canudos, e que nessa occasião apresentou emenda para que a Camara se manifestasse contra esses factos”. O mesmo parlamentar, contudo, retirou a tal emenda, por entender que cabia ao governo “syndicar os fatos” e propôs, em seu lugar, uma congratulação “com o Paiz pela victoria da guerra em Canudos, trazendo a paz aos brasileiros”. Novamente, não houve acordo e a votação acabou adiada.
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GUERRA – Soldados reconstituem captura de canudenses para fotógrafo Flávio de Barros (Flávio de Barros - Museu da República) |
Das seis mudanças de nome feitas pela Câmara em 1897, apenas duas perduraram – a General Carneiro e a Capitão Salomão. Situação parecida ocorreu no Rio de Janeiro, que na mesma época rebatizou a Rua do Ouvidor como Moreira César, nome que também não pegou. Houve, porém, um nome originado de Canudos que atravessou o século, levado por antigos soldados da Guerra que foram morar no Rio de Janeiro. Descartados pelo Exército após a batalha, os antigos combatentes subiram em um morro para ali erguer casebres onde pudessem morar. Em homenagem a um morro de Canudos, batizaram o local de Favela. O nome “favela” se espalhou pelo País e passou a designar conjuntos de habitações precárias das cidades que, ao longo das décadas seguintes, algumas autoridades tratam do mesmo jeito que trataram Canudos – com a mesma brutalidade e, quase sempre, com impunidade.
(Reportagem extraída da excelente Revista Apartes da CMSP.
Link: http://www.camara.sp.gov.br/apartes-anteriores/revista-apartes/numero-4-dezembro2013/no04-nomes-de-guerra/)
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