A cobrança de impostos era fonte permanente de conflitos entre as províncias e a Corte
Quando o Brasil se tornou uma nação independente, em 1822, havia mais de 300 anos que aqui se cobravam diversos tipos de tributos para a Coroa portuguesa. Além dos dízimos e quintos, cobrados sobre a produção e extração de bens – ouro, diamantes, pau-brasil, tabaco, aguardente – e até mesmo sobre porcos e galinhas (dízimo de miunças), em todas as capitanias havia diversos tipos de “pedágio”. Os direitos de passagem eram cobrados nas estradas e nas passagens dos rios, e as entradas controlavam o acesso de pessoas, animais e mercadorias às terras minerais.
Taxava-se também o tráfico de escravos em todas as suas etapas, isto é, da sua saída da África ao ingresso no Brasil, assim como se impunham múltiplas taxas pagas no aparelho judiciário e administrativo (dízimas de chancelaria, donativos, terças partes e diversas outras taxas, chamadas de propinas). A estes itens somava-se uma infinidade de taxas de caráter local, destinadas a prover os custos de administração e defesa.
As reformas efetuadas na gestão do marquês de Pombal (1750-1777) no governo português promoveram a criação de vários impostos – entre eles, o Subsídio Literário (para pagar professores de primeiras letras) e o Novo Imposto (criado como Subsídio Voluntário, para ajudar a reparar os danos causados pelo terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755), contribuição que nada tinha de “voluntária”, assim como aquelas destinadas a compor o dote de princesas em casamentos reais.
A ação mais importante do marquês de Pombal, entretanto, foi a reorganização do sistema arrecadador: ele reduziu o poder fiscal das câmaras, criou Juntas da Fazenda em cada uma das capitanias do ultramar e ligou cada uma delas ao novo Erário Régio, localizado em Lisboa.
Desde então, e até a vinda da Corte, em 1808, não houve na América um centro arrecadador, sendo apenas o quinto do ouro arrecadado no Rio de Janeiro. As capitanias eram unidades arrecadadoras e pagadoras, esperando-se que enviassem ao Erário Régio as sobras de suas administrações.
A chave do sistema estava no modo como se dava a arrecadação: ela não dependia de coletorias ou estações fiscais, como se faz hoje, mas de uma vasta rede de agentes privados responsáveis pela coleta dos principais tributos. Estes eram os célebres contratadores, em geral grandes comerciantes, muitos deles traficantes de escravos, que arrematavam no Erário o direito de arrecadar certos ramos de tributos, em certas regiões, mediante a antecipação à Coroa de um valor estimado do imposto.
Ou seja, a Coroa leiloava a particulares o direito de cobrar tributos. Através de suas redes de comércio e relações, e apoiados em suas próprias milícias privadas, os contratadores cobravam do contribuinte o máximo que pudessem obter, pois era essa a vantagem do negócio. Por isso, eram figuras bastante detestadas no período colonial.
Por meio de contatos políticos e redes de negócios, muitos comerciantes radicados na América adentraram o rendoso negócio dos contratos régios, estando entre eles alguns dos homens mais ricos e poderosos da Colônia, depois Reino e Império do Brasil. Entre os personagens envolvidos na Inconfidência Mineira (1788-89), o mais conhecido ensaio de revolta fiscal do período colonial, vamos encontrar grandes contratadores, como Domingos de Abreu Vieira, João Rodrigues de Macedo e o célebre Joaquim Silvério dos Reis.
Contratos de registros e passagens estiveram na origem das grandes fortunas de São Paulo, amealhadas por Antônio da Silva Prado, Nicolau de Campos Vergueiro, brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar e a família de José Bonifácio de Andrada de Silva, entre outras.
Pesada para os contribuintes e sujeita a todo tipo de arbítrio, a tributação arrecadada por intermédio dos contratadores também não era benéfica aos cofres da Coroa. Na indistinção entre fortuna privada e os fundos públicos, os contratadores mais prestigiosos frequentemente fraudavam o Erário, não depositando as fianças, atrasando parcelas devidas ou mesmo deixando de cumprir os contratos, ajudados por funcionários coniventes.
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o grande estadista português que viveu os momentos mais agudos da crise do antigo regime e do sistema colonial e articulou a vinda da Corte para a América, era um crítico atroz do sistema de contratos, similar, segundo ele, àquele que levara à ruína da França e à Revolução Francesa e que fora responsável pela conspiração em Minas Gerais.
Apesar de sua aversão ao sistema de contratos, D. Rodrigo de Souza Coutinho não foi capaz de extingui-lo quando a Corte se estabeleceu no Brasil e o Erário Régio, no Rio de Janeiro. Entretanto, ele esteve associado a uma medida de grande e imediato efeito sobre as finanças: a abertura dos portos do Brasil às nações amigas, em 1808, e a estipulação de uma tarifa de importação de 15%, aplicada primeiro à Inglaterra e depois estendida, por meio de tratados, ao comércio com as várias nações do mundo.
A fúria fiscalizadora da Coroa se intensificou com a chegada à América. Era necessário prover recursos para os gastos militares, a montagem de um aparelho administrativo-fiscal e as necessidades uma Corte dispendiosa. Era preciso também propiciar oportunidades de ganho para negociantes que tinham vindo com o rei, ávidos por oportunidades lucrativas, e, ao mesmo tempo, compor os interesses de uma elite local, esperançosa também de um lugar ao sol no lucrativo mundo dos contratos régios.
Procurou-se submeter à taxação tudo o que fosse possível, até mesmo os pecados da população, ao se estabelecer uma taxa sobre a bula das confissões. Introduziu-se um conjunto de impostos que tentavam, pela primeira vez, taxar as propriedades e as fortunas, além de um conjunto de taxas voltadas para a criação do primeiro Banco do Brasil. Esse “pacote fiscal” teve sucesso duvidoso, gerando grande descontentamento. Em parte, foi em oposição a ele que eclodiu a Revolução Pernambucana de 1817.
Na região empobrecida pela crise econômica, novos encargos fiscais, impostos criados sobre as exportações de açúcar e tabaco somados aos novos impostos que deveriam financiar a consolidação do Rio de Janeiro como centro político do Reino Unido ajudaram a fermentar a revolta. Simbolicamente, as arrecadações de dízimos e sizas deixaram de ser enviadas para o Rio de Janeiro, sendo retidas para financiar a revolta, e um irritante imposto destinado a pagar pela iluminação do Rio de Janeiro foi revertido para trazer o benefício para a cidade do Recife.
Em sua primeira proclamação após a Independência, o príncipe D. Pedro prorrogou a validade de todos os tributos então vigentes, deixando para a futura Assembleia Constituinte, convocada para se reunir em 1823, a espinhosa missão de propor uma nova estrutura tributária para o país. A partir da outorga da Constituição, em 1824, estabeleceu-se uma inovação muito importante no plano tributário: toda a iniciativa de extinção ou criação de impostos deveria, daí em diante, passar pela assembleia dos representantes da nação.
Um decreto extinguindo a contratação dos dízimos foi publicado em 16 de abril de 1821, gerando uma avalanche de reclamações junto ao governo pelos interesses feridos, pois este era o mais rendoso ramo dos contratos públicos. Os contratos continuaram a operar em outros ramos, e as fraudes se multiplicavam. Em 1828, o Ministério da Fazenda promoveu um levantamento da dívida pública nas diversas províncias, onde se comprovou que os contratadores eram os maiores devedores do Erário.
O Primeiro Reinado enfrentou enormes dificuldades de arrecadação, pressionado pelos custos da guerra pela independência e da guerra no sul. Durante esse período, as finanças do governo central estiveram praticamente reduzidas aos recursos produzidos pelo Rio de Janeiro (particularmente, pela alfândega do maior porto do país), complementados pelo financiamento da Inglaterra, fundamento da considerável dívida externa que marcou o nascimento do Estado soberano brasileiro.
A partir do Ato Adicional (1834) e da legislação fiscal subsequente, desenvolveu-se a principal reforma fiscal do Império, separando pela primeira vez as competências fiscais do centro e das províncias. Deixou-se às províncias, além do antigo dízimo, agora cobrado no ato da exportação, o conjunto de rendas internas consolidadas no período joanino: selo de legados e heranças, siza dos prédios, meia siza sobre o comércio de escravos nascidos no Brasil (os chamados escravos “ladinos”), entre outras rubricas. O esforço do Rio de Janeiro, que produziu, ao longo de todo o século XIX, cerca de metade da renda alfandegária do Império, foi o de criar um sistema de alfândegas nos demais portos e fiscalizar o sistema arrecadador.
As províncias, de modo geral, desenvolveram seus aparatos arrecadadores de modo muito mais lento e menos eficaz. A tentativa de fazer a matrícula dos escravos, em 1842, com o objetivo de viabilizar a cobrança da meia siza sobre a venda dos escravos ladinos, encontrou em toda parte grande resistência dos senhores de escravos, que não queriam expor ao Estado os seus plantéis, parte dos quais, entrada depois de 1831, era francamente ilegal. O esforço de se fazer o censo e implantar o registro civil, em 1851, gerou uma onda de revoltas de homens livres e pobres conhecida como Guerra dos Marimbondos, que atingiu várias províncias do Nordeste (Pernambuco, Ceará, Alagoas, Rio Grande do Norte).
A Guerra dos Marimbondos foi um levante de pequenos agricultores, alguns nascidos livres, outros libertos, inconformados e alarmados com a promulgação, em 1851, do Regulamento do Registro dos Nascimentos e Óbitos no Império e da lei que instituía a realização do censo. A lei impunha, pela implantação do Registro Civil, a mudança de uma esfera que sempre estivera sob controle das paróquias: o registro de batismo, nascimentos e óbitos, espaço onde também se colocavam promessas e condições de futura alforria. A mudança da esfera de registro da paróquia para o poder civil era vista como ameaçadora para os homens de cor livres, forros ou ligados a várias gradações e possibilidades de liberdade.
Possivelmente por isso, o Registro foi rapidamente apelidado de “Lei do Cativeiro”, pela crença popular de que, coincidindo com as leis que determinavam o fim da importação de mão-de-obra africana escrava, destinava-se, na verdade, a recuperar para o escravismo uma ampla camada da população que não tinha até então sido objeto de atenção por parte do Estado ou dos proprietários das plantations açucareiras da zona da mata nordestina, ou fazer reverter situações de alforria concreta ou prometida. Os sertanejos revoltados atacavam os funcionários dos censos e destruíam os registros, forçando, ao fim e ao cabo, o governo imperial a desistir de sua implantação. O registro civil só veio a ser estabelecido depois da Proclamação da República.
Foi também lenta e desigual a racionalização do sistema fiscal no centro e nas províncias. Enquanto no centro o sistema baseado nas alfândegas conseguia incorporar aperfeiçoamentos próprios de uma organização mais moderna, muitas províncias retornaram, aos poucos, ao sistema de contratação privada de impostos, que, embora ineficaz para as finanças públicas, continuava sendo uma importante fonte de poder e enriquecimento, pois no plano provincial fazia-se sentir de forma mais intensa a resistência a qualquer forma de arrecadação que tributasse propriedades e fortunas. Os antigos impostos sobre registros e passagens também foram restabelecidos com outros nomes, criando entraves e encarecendo a circulação interna de mercadorias.
Gravitando em torno do sistema alfandegário, o antigo sistema brasileiro de tributação sempre conviveu com sérias rivalidades entre as províncias, gerando guerras fiscais endêmicas que perdurariam até a criação de instrumentos e formas mais aceitáveis de arrecadação.
*Wilma Peres Costa é professora do Curso de História da Unifesp e autora do artigo “Do Domínio à Nação, impasses da fiscalidade no processo de Independência”. In: István Jancsó (org.) A formação do Estado e da Nação Brasileira. 1ª ed. São Paulo: Ed. Hucitec, 2003, v. 1, p. 143-194.
(Fonte: Revista História da Biblioteca Nacional, nº 23, Ago/2007)
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