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'Dom Quixote em sua Biblioteca', trabalho do artista brasileiro Vik Muniz (http://vikmuniz.net/gallery/rebus) |
por Sérgio Molina
Depois de um prefácio semeado de ironias, em que a obra -da qual "Cervantes" se declara padrasto- é definida como "invectiva contra os livros de cavalarias", e de um punhado de poemas elogiosos assinados por grandes personagens desses mesmos livros, começa a história de D. Quixote. De saída, conta-se que um certo fidalguete de uma incerta aldeia no coração da Espanha, acometido de delirium legens, resolveu encarnar um cavaleiro andante à imitação de seus heróis de cabeceira. Vemos como ele arma sua fantasia, dá nome a si mesmo e a seu cavalo, elege a senhora de seus pensamentos e se esgueira campo afora em busca de aventuras memoráveis. Já na estrada, interpela o "sábio encantador, a quem caberá ser cronista desta peregrina história", sonhando com o livro que há de eternizar suas façanhas. Em seguida, lemos as três primeiras: a cerimônia patética em que D. Quixote é armado cavaleiro, numa estalagem que imagina ser castelo; a salvação de um pastorzinho, cujo patrão o açoita com mais gana assim que o paladino vira as costas; o desafio a uns mercadores, instados a declarar a beleza ímpar de Dulcinéia, que termina com cavalo e cavaleiro estatelados à beira do caminho. O passeio se encerra com a ajuda de um lavrador que reconhece o vizinho Alonso Quijana e o carrega de volta à aldeia. Não sem antes ouvir dele um sonoro "Eu sei quem sou!".
SÉRGIO MOLINA é tradutor de "O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha" (Ed. 34), entre outros.
Um vizinho bonachão montado num jumento
O alucinado fidalgo é recebido por seus próximos -governanta, sobrinha, padre e barbeiro-, que, detectando em sua biblioteca a fonte do desvario, decidem queimar os livros culpados. (Escaparão do auto-de-fé alguns poucos e bons de cavalarias, vários de poesia e um do próprio Cervantes.) Privado da biblioteca, cujo sumiço é assacado às artes mágicas de um sábio maligno, D. Quixote apressa os preparativos da uma segunda saída e trata de engajar seu escudeiro, um vizinho bonachão que o seguirá montado num jumento, levado pela promessa de ser alçado a governador da primeira "ínsula" conquistada.
A dupla põe então os pés no mundo e em seguida vive sua mais famosa aventura, a dos moinhos de vento. Finda a trapalhada, D. Quixote explica a um espantado Sancho Pança a verdade do acontecido: foi tudo coisa daquele feiticeiro ladrão de seus livros, que transformou os gigantes em moinhos para lhe roubar "a glória do seu vencimento".
Não demora, o cavaleiro topa com outro adversário, um personagem malfalante e irascível até o ridículo, que não suporta suas maluquices e o enfrenta à espada, com uma almofada por escudo. No meio da refrega, quando D. Quixote prepara o revide a um duro golpe, a cena é congelada com o seguinte comunicado do narrador: "Neste ponto e termo, deixou pendente esta batalha o autor desta história, pretextando não ter achado dessas façanhas de D. Quixote nada mais escrito além do referido".
Uma série de encontros memoráveis
Pano rápido, e um "segundo autor" conta que, com certa dose de perseverança e enorme de sorte, conseguiu encontrar a continuação da história de D. Quixote num manuscrito em árabe, assinado por um tal Cide Hamete Benengeli. Providenciada a tradução do cartapácio, a fita volta a andar.
D. Quixote derrota seu sanhudo contendor, para grande admiração de Sancho Pança, e a dupla retoma a trilha aventureira, que será pontuada por episódios memoráveis: o encontro com um grupo de generosos cabreiros, que D. Quixote honrará com o célebre discurso sobre a Idade Dourada, tão edificante quanto incompreensível para os rústicos ouvintes; as pastelonas confusões com uma donzela abusada e um mouro encantado em outra estalagem-castelo, onde caberá a Sancho pagar a conta da hospedagem com um vertiginoso vexame; a luta de D. Quixote na batalha entre dois portentosos exércitos, reduzidos a rebanhos de carneiros pelo famigerado bruxo; a tomada do elmo de Mambrino, a olhos desavisados, uma reles bacia de barbeiro; além de outros tantos feitos de armas e palavras atravessados de disparates e agudezas de vário feitio e quilate.
Coroando a série, a libertação de uma turma de prisioneiros a caminho das galés, que, ingratos, se negam a render homenagem à senhora Dulcinéia e sepultam cavaleiro, escudeiro e respectivas cavalgaduras sob uma chuva de pedradas.
Umas piruetas com a natureza à mostra
Foragida da justiça por soltar os galeotes, a dupla busca refúgio na Serra Morena. Já dentro do labirinto agreste, D. Quixote resolve imitar seu herói Amadis de Gaula numa dura penitência, como prova de amor pela dama de seus pensamentos. Tira roupa e armadura, obriga Sancho a presenciar umas piruetas com as naturezas à mostra e o despacha para o povoado de El Toboso para dar testemunho a Dulcinéia das loucuras que é capaz de fazer em seu nome.
No caminho, porém, o fiel escudeiro é interceptado por aqueles dois inquisidores de livros, o padre e o barbeiro, que à força de ameaças conseguem arrancar-lhe o paradeiro de seu senhor. O par de amigos de D. Quixote urde então um plano para atraí-lo de volta ao lar: irão a seu encontro e um deles representará uma donzela desvalida, suplicando-lhe auxílio no mais irresistível estilo cavaleiresco.
Chegando à serra, os dois ainda têm a sorte de achar uma linda jovem que se oferece para atuar na farsa melhorada, no papel da usurpada princesa Micomicona.
Sancho, por seu turno, chamado à parte por seu senhor, faz um hilário relato do encontro que não teve com Dulcinéia, com direito a um curto e grosso recado de amor e pencas de anticlimáticos floreios.
O cavaleiro engole (ou faz de conta que) tanto as patranhadas de seu escudeiro quanto a pantomima dirigida pelo padre e deixa a serra rumo ao reino de Micomicão.
Sangrento combate com vários gigantes
Logo a comitiva pousa naquele mesmo castelo (ou estalagem) enfeitiçado onde na ida os heróis padeceram impagáveis tribulações. Enquanto D. Quixote se recolhe a repor as energias, os demais hóspedes se entregam a um lauto sarau, com direito a saborosas leituras e discussões sobre a verdade dos livros.
O enredo das mil e uma histórias desfiadas nessa noite e os incríveis desenredos protagonizados pelos personagens que vão chegando à hospedaria mereceriam todo um resumo à parte, com lugar até para episódios da vida de Cervantes. Mas tampouco para Sancho e D. Quixote essa noite passa em vão. Para este, porque se baterá em sangrento combate com vários gigantes que invadem seu quarto (depois de decapitados, convertidos em odres de vinho pelo feiticeiro seu perseguidor); para aquele porque, enquanto seu senhor luta nas sombras, se defrontará com estremecedoras revelações, entre elas a de que os livros que seu amo tanto ama podem não passar de tremendo faz-de-conta.
Logo verá, com outros olhos, o padre e o barbeiro armarem uma nova encenação para conduzir D. Quixote de volta para casa: metê-lo numa jaula, amansá-lo com uma mascarada profecia anunciando sua pronta união com Dulcinéia e, sob o efeito desse encantamento, carregá-lo sobre um carro de bois.
Maldições contra os livros mentirosos
A caminho de casa, o prisioneiro tem o feitiço relaxado e arranca para um último pique de tiradas e desatinos, secundado por um Sancho a cada passo mais agudo em suas besteiras. Por fim, ao atacar um grupo de penitentes em procissão (ou pérfidos seqüestradores de uma "principal senhora"), D. Quixote é nocauteado com um paulada certeira e só se reanima quando Sancho pranteia sua morte em termos mais que dignos de um cavaleiro.
O da Triste Figura pede então que o depositem sobre o carro desencantado e assim, estendido sobre um monte de feno, faz sua reentrada na aldeia. Sancho é recebido pela mulher, ansiosa por presentes; D. Quixote, pela sobrinha e pela governanta, que, ao verem seu estado, multiplicam as maldições contra os livros mentirosos, temendo que, reposto o fidalgo, o cavaleiro volte à carga.
O "autor" afirma que, de fato, houve uma terceira saída, mas que dela nunca se achou um registro fidedigno. Diz saber apenas que, segundo consta nas "memórias de La Mancha", as novas andanças de D. Quixote o levaram até os torneios de Saragoça, onde "lhe aconteceram coisas dignas do seu valor e bom entendimento".
Termina revelando o achado de uns pergaminhos quase ilegíveis, dos quais conseguiu transcrever apenas alguns epitáfios joco-laudatórios aos personagens do livro, e arremata com um verso emprestado e convidativo: "forse altro canterà con miglior plectro".
Indo à forra contra o falso "Quixote" O Engenhoso Cavaleiro...", a segunda parte do díptico cervantino, apanhou o mote de um certo "Segundo Tomo del Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha, Que Contiene Su Tercera Salida...", ou "Quixote Apócrifo", assinado por um tal Licenciado Alonso Fernández de Avellaneda, e o virou do avesso.
Mas quem vai à forra no melhor estilo é o próprio D. Quixote. Primeiro quando, ao folhear o livro falso, decide abandonar a estrada rumo a Zaragoza só para contrariar o que nele se narra -e, de quebra, o anunciado no epílogo da primeira parte-, desviando-se para Barcelona, onde terá a chance de amaldiçoar o volume espúrio na mesmíssima tipografia em que está sendo impresso.
Mais adiante, cavaleiro e escudeiro encontrarão um personagem da continuação ilegítima e lhe provarão serem eles os autênticos D. Quixote e Sancho Pança, e não o par de cretinos seus conhecidos.
Para não deixar lugar a dúvidas, o protagonista ainda pedirá ao pasmo sujeito que lavre um documento formal, "(...) uma declaração (...) de que vossa mercê não me viu em todos os dias de sua vida até agora e de que eu não sou o D. Quixote impresso na segunda parte, nem este Sancho Pança meu escudeiro é aquele que vossa mercê conheceu". Ao que o demandado responde: "Isso farei de muito bom grado, embora me admire ver dois D. Quixotes e dois Sanchos ao mesmo tempo tão conformes nos nomes quanto diferentes nas ações".
As altas cavalarias já correm em estampas Esse estranhamento não envolve apenas as citações do apócrifo, concentradas no terço final de "O Engenhoso Cavaleiro...", mas se faz sentir desde sua frase inicial, "Conta Cide Hamete Benengeli...", reveladora de que os manuscritos do "historiador arábico" não se esgotaram no primeiro livro, ao contrário do que nele se dá a entender. Pouco depois, o paradoxo ganha corpo com a notícia-bomba que Sancho dá a seu amigo e senhor às vésperas da terceira saída: a história deles "já anda em livros, com o nome de "O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha'".O que leva à assombrosa dedução de que os escritos de Cide Hamete se projetam ao futuro e relatam sua própria publicação, com suas vicissitudes e conseqüências. Mesmo quem passar ao largo de tais labirintos não deixará de estranhar a rapidez da edição, sabendo que a narração é retomada menos de um mês após o retorno de D. Quixote no carro de bois.
Ele mesmo, ao tomar conhecimento da existência de tão sonhado livro, "não se podia persuadir de que tal história houvesse, pois ainda não estava seco no gume de sua espada o sangue dos inimigos que matara, e já queriam que suas altas cavalarias corressem em estampa". Diante do enigma, "imaginou que algum sábio" as publicara "por arte de encantamento". Explicação tão previsível quanto poderosa, pois só mesmo um "sábio encantador" digno da imaginação quixotesca seria capaz de operar tamanhos prodígios.
Dois ávidos leitores de alto coturno Logo se verá que as artes do triunvirato autor mouro/tradutor/ autor cristão, e as de qualquer outro sábio encantador que se possa vislumbrar nas entrelinhas, nada seriam sem os leitores do "Engenhoso fidalgo...". O primeiro a se apresentar, com o sugestivo nome de Sansón Carrasco, é um estudante recém-chegado da cidade grande com uma boa bagagem de manhas e malícias, a quem caberá o papel principal numa nova tramóia do padre.
Sua missão consistirá em, primeiro, incentivar D. Quixote a retomar suas andanças para, em seguida, disfarçado de outro cavaleiro espelhado no da Triste Figura, interceptá-lo na estrada, desafiá-lo a duelo e, depois de vencê-lo, exigir que se recolha ao lar. Mas por conta de percalços não previstos no script -talvez por errarem a mão na imitação de D. Quixote-, o embate final terá lugar, não a um passo da aldeia, e sim nas distantes praias de Barcelona.
Antes disso, porém, muita água vai mover o moinho, e um novo jorro de aventuras e desventuras remoerá as passadas, virando de ponta-cabeça todo seu jogo de ilusões e reduzindo a pó qualquer expectativa de repetição.
No meio do caminho, entrarão em cena dois ávidos leitores de alto coturno, um casal aristocrata que, divertidíssimo com os disparates protagonizados por Sancho e D. Quixote, não poupará recursos para vê-los em ação nos seus domínios senhoriais, para sua maior recreação e fama.
O amargo regresso à aldeia manchega Nos 30 capítulos transcorridos sobre o imenso palco armado pelos duques, onde eles mesmos contracenam com a dupla protagonista apoiados por um vasto elenco de criados e vassalos, assiste-se a um arremedo caprichoso da imaginação quixotesca e sancho-pancesca, segundo a leitura do eminente casal -ele próprio convertido em caricatura ao afetar nobrezas de antanho. A farsa retomará os temas, as tramas e teimas do cavaleiro e seu comparsa e os enredará em um cortejo entre sinistro e burlesco de demônios, magos, damas encantadas, cavalos voadores, donzelas enamoradas, gigantes e duelistas. Mas o feitiço por momentos se voltará contra o feiticeiro; a representação excederá o puro escárnio e descortinará algumas verdades inconfessáveis no jogo de simulação e fantasia. Como na aventura da fictícia Ínsula de Barataria, um povoado cujo governo os duques fingirão confiar a Sancho com a intenção de expô-lo ao ridículo, mas que a atuação do escudeiro-governador deixará bem malparada.
Quando afinal deixarem os domínios dos duques, os heróis levarão sem saber um tesouro compartilhado, que irá revelando seu peso e valor no percurso até Barcelona, no amargo regresso à aldeia manchega e, sobretudo, no epílogo. Nele se acaba a vida do fidalgo, como você saberá desde o início; mas o que reservam os últimos diálogos de Alonso Quijano com Sancho não pode ser antecipado nem resumido sem perda. Aliás, como tudo que foi relatado aqui.
(Sérgio Molina - Folha de São Paulo, 18 de junho de 2005, Especial https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/inde18062005.htm)
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