domingo, 24 de maio de 2015

A mosca do alvo (Cacá Diegues, O GLOBO)

"Às vezes, sabemos onde está o alvo, mas não atinamos com a mosca, sendo a mosca o ponto central do alvo, aquilo que devemos acertar em cheio. O mais comum não é atirar fora do alvo, mas sim errar a mosca".


A mosca do alvo

Somos capazes de inventar as mais sórdidas saídas para situações difíceis que poderiam se resolver de um modo mais humano.
Às vezes, sabemos onde está o alvo, mas não atinamos com a mosca, sendo a mosca o ponto central do alvo, aquilo que devemos acertar em cheio. O mais comum não é atirar fora do alvo, mas sim errar a mosca.

O vereador Célio Lupparelli, por exemplo, apresentou um projeto na Câmara em que proíbe o turismo nas favelas cariocas, um gesto que se parece muito com o das potências europeias que pretendem mandar mais polícia para o Mediterrâneo, afim de evitar a migração constante de africanos que acabam perdendo a vida em naufrágios.

À primeira vista, nos inclinamos a considerar compassiva a determinação da Comunidade Europeia que, assim, evitaria novos naufrágios e mais afogados. Mas por que não perguntar antes porque esses pobres seres humanos decidem correr o risco consciente do naufrágio, risco que compram com muitos euros de novos negreiros escravistas?

O nosso Lupparelli justifica seu projeto de lei afirmando que é preciso acabar com esse “turismo da miséria”, a visita de ricos estrangeiros às nossas pobres favelas. Mas, em primeiro lugar, não é a miséria que atrai os turistas, e sim o encontro com uma cultura original e diferente da deles e da do asfalto. Além da vista privilegiada que têm da cidade contemplada do Vidigal, da Babilônia ou do Santa Marta, eles encontram música e poesia, arquitetura e papo furado, outra maneira de lidar com o outro, nessas comunidades em que experimentam a carne-seca com abóbora que não é servida nos restaurantes finos da Zona Sul.

Mas se isso não for verdade, se eu estiver sonhando, por que o vereador e seus colegas não procuram passar projetos que acabem de vez com a miséria que querem tanto esconder? Essa é a mosca de um alvo demagógico patrocinado por nossos políticos. Um deles, anos atrás, quando ainda disputávamos o direito de realizar uma Olimpíada no Rio de Janeiro, ofereceu às autoridades olímpicas internacionais cercar as favelas cariocas com muros altos que protegessem a visão delicada de atletas e visitantes. Sugeri juntar o povo todo no Maracanã e ligar o gás.

Está na moda esportiva desancar o futebol brasileiro, negar-lhe todo e qualquer respeito ou valor. Certo, temos assistido a inconcebíveis peladas nos campeonatos regionais e na Copa do Brasil, mas isso não deve ser posto na conta apenas de nossos jogadores, técnicos e dirigentes. Nossos craques foram embora jogar na Europa, nos Estados Unidos, no Oriente Médio e até na Ásia, porque por lá ganham mais para compensar a profissão de vida tão curta e recebem melhor tratamento do que em nosso país.

Entre nós, ficam apenas os eternos medíocres e medianos, os jovens que ainda não se tornaram conhecidos e os que vêm se aposentar da consagração estrangeira em suas casas. No dia em que nossos clubes puderem pagar-lhes o que merecem e ganham no exterior, estaríamos acabando com a tristeza chocante de gente como Ronaldinho Gaúcho, a angústia de Adriano o Imperador, a ansiedade de Neymar, nossa estrela maior. A mosca é mudar o país, para que ele tenha capacidade econômica para manter nossos melhores entre nós mesmos.

Romain Gary, escritor francês do século XX, dizia que o que havia de humano nos nazistas era a sua desumanidade. E isso não é um exagero. Para termos a ilusão de estarmos protegidos e com nossos direitos acima dos direitos dos outros, somos capazes de inventar as mais sórdidas saídas para situações difíceis que poderiam se resolver de um modo mais humano.

Agora enfrentamos a possibilidade de a maioridade penal cair para 16 anos, porque constatamos o aumento do número de ladrões, bandidos e assassinos nessa faixa de idade. Não nos ocorre que esta é uma solução cínica e inútil, que não evitaremos com tal irracionalidade a ocorrência de novos crimes praticados por adolescentes, que apenas aumentaremos o número de jovens nas cadeias nacionais, essa escola superior de bandidagem.

Seria muito mais correto pensarmos no que está no centro de nosso alvo no assunto — diminuir a incidência do crime significa, antes de tudo, dar oportunidade aos jovens que não a têm, horizontalizar a educação e o convívio social. Não existe democracia apenas com liberdade; a democracia só é sólida onde os cidadãos têm oportunidades de usar sua liberdade.

A informática está mudando nossa vida. Ela pode nos transformar ainda mais, e para melhor, se dedicarmos nosso trabalho com ela ao conhecimento e à cultura, ao progresso e à convivência humanos. Mas nem sempre é isso que acontece. Tenho recebido constantes mensagens pela internet anunciando o “Relógio Espião de Mesa”.

Reuniões de trabalho ou festas, encontros entre amigos ou parentes, a vida de sua mulher quando você não está por perto, tudo isso pode ser registrado pelo tal “relógio” sem que ninguém perceba. “Excelente equipamento para deixar em seu escritório, casa, apartamento, etc.”, diz o anúncio. Você pode monitorar empregados, a família, quem você quiser. Quando todo mundo tiver um “relógio” desse, a mosca vai ser viver numa ilha deserta.

Cacá Diegues é cineasta.




Excelente artigo publicado na edição impressa de O GLOBO, 03 de Maio de 2015, p. 21, e na internet, no link: http://oglobo.globo.com/opiniao/a-mosca-do-alvo-16030663

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