quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O grande intérprete do Brasil

LUÍS NASSIF

Neste final de semana, o governador de Sergipe, João Alves, inaugurou um memorial em homenagem aos vultos do Estado. Os homenageados foram Tobias Barreto, Sílvio Romero. Na última etapa do projeto entrou o grande intelectual esquecido, Manuel Bonfim, médico, psicólogo, historiador, o homem que precedeu os grandes intérpretes da nacionalidade dos anos 20 e 30. Agradeço ao governador por ter acreditado na minha dica e constatado a importância de Bonfim.
Fui apresentado a Bonfim em meados dos anos 90, por meio de uma reedição pela Topbooks de seu clássico "América Latina, Males de Origem", escrito no início do século passado, no alvorecer da República. É uma obra extraordinária. Estão ali, claramente identificados, tipos que, quase cem anos depois, ajudariam a modelar a Nova República. Estava a aliança política que se apossa do poder e consome os recursos do Estado, os políticos que falam em republicanização, e, à medida que vão chegando perto do poder, repetem o padrão anterior. Estava a crise econômica que explode com a falta de arranjo político. A crise é do Estado, mas com seu poder de emissão vira crise do país, diz ele. E, quando a opinião pública começa a se dar conta de que o problema era o modelo de Estado, surge a figura do "financista", o sujeito que estudou no exterior, vem com as últimas teorias e com a fórmula mágica: o equilíbrio orçamentário, seja de que forma for.
Aí começam a analisar onde cortar. Soldos dos militares certamente não (na época). Favores políticos, nem pensar. Corta-se, então, na linha de menor resistência: educação, saúde. No final do processo, constatava Bonfim, o Estado estava salvo e o futuro comprometido.
A tese central de Bonfim era a de que tudo isso derivava do padrão político herdado da colonização ibérica. Bonfim teve esse "insight" a partir de um trabalho menor de José Francisco da Rocha Pombo.
Homem de visão focada na realidade, terminou apagado do mapa pelo establishment intelectual. Dizem que por conta de uma polêmica com Sílvio Romero, que baixou o nível a tal ponto que Bonfim recusou-se a polemizar.
Ficou-lhe creditado o mérito de ter liquidado com as teorias raciais do início do século 20. Comprovou que, ao contrário dos que achavam que a miscigenação tinha gerado uma sub-raça, o melhor do Brasil era o brasileiro. A elite fez a Guerra do Paraguai, o povo fez a Abolição, dizia ele.
Mais que isso. Junto com a derrubada do mito racial, pensou um modelo de país contemporâneo. Via os EUA, o Japão e a Argentina se desenvolvendo. Admirava o modelo americano, das empresas ajudando na educação, mas sabia que era inviável no Brasil. Postulava, então, uma intervenção do Estado, garantindo educação e ambiente econômico favorável para o florescimento de empresas.
Acabou se desiludindo completamente com a elite brasileira. Viu com ceticismo a Revolução de 30 e morreu pouco depois, deixando algumas obras finais amargas.
Mas foi um batalhador incansável da brasilidade em todos os níveis. Foi o criador do Almanaque Tico-Tico. Com Olavo Bilac fez um pequeno livro de geografia para crianças, no qual os personagens viajavam por todo o país, mostrando as diferenças entre as diversas regiões.
Ao longo do século, suas idéias foram captadas por poucos garimpeiros, como ouro puro no cascalho que poluía a discussão política. Quando adolescente, o professor Antônio Cândido recebeu de seu pai o conselho para ler o "América Latina". "Tem um autor que está pensando o Brasil de forma diferente", disse-lhe o dr. Aristides. Depois, em 1968 o próprio Antonio Cândido fez uma candente defesa de Bonfim em seminário em São Paulo. Mais tarde, Bonfim foi descoberto por Darcy Ribeiro, que se tornou um apaixonado por sua obra.
Depois mergulhou de novo no ostracismo, até ser resgatado pela edição da Topbooks. Pouco antes de sair do Ministério da Cultura, Francisco Weffort publicou uma brasiliana em papel-bíblia, onde Bonfim, finalmente, foi colocado no panteão dos grandes desbravadores da nacionalidade, ao lado de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque, entre outros.
E-mail: Luisnassif@uol.com.br

(Publicado em 19 de Março de 2006, Jornal Folha de São Paulo. Extraído do link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1903200607.htm)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Recuperandos da APAC Manhuaçu participam de curso de classificação de cafés especiais

Recuperandos da APAC Manhuaçu (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) participaram de um novo treinamento direcionado à área d...