
Neste final de semana,
o governador de Sergipe, João Alves, inaugurou um memorial em homenagem aos
vultos do Estado. Os homenageados foram Tobias Barreto, Sílvio Romero. Na
última etapa do projeto entrou o grande intelectual esquecido, Manuel Bonfim,
médico, psicólogo, historiador, o homem que precedeu os grandes intérpretes da
nacionalidade dos anos 20 e 30. Agradeço ao governador por ter acreditado na
minha dica e constatado a importância de Bonfim.
Fui apresentado a
Bonfim em meados dos anos 90, por meio de uma reedição pela Topbooks de seu
clássico "América Latina, Males de Origem", escrito no início do
século passado, no alvorecer da República. É uma obra extraordinária. Estão
ali, claramente identificados, tipos que, quase cem anos depois, ajudariam a
modelar a Nova República. Estava a aliança política que se apossa do poder e
consome os recursos do Estado, os políticos que falam em republicanização, e, à
medida que vão chegando perto do poder, repetem o padrão anterior. Estava a
crise econômica que explode com a falta de arranjo político. A crise é do
Estado, mas com seu poder de emissão vira crise do país, diz ele. E, quando a
opinião pública começa a se dar conta de que o problema era o modelo de Estado,
surge a figura do "financista", o sujeito que estudou no exterior,
vem com as últimas teorias e com a fórmula mágica: o equilíbrio orçamentário,
seja de que forma for.
Aí começam a analisar
onde cortar. Soldos dos militares certamente não (na época). Favores políticos,
nem pensar. Corta-se, então, na linha de menor resistência: educação, saúde. No
final do processo, constatava Bonfim, o Estado estava salvo e o futuro
comprometido.
A tese central de
Bonfim era a de que tudo isso derivava do padrão político herdado da
colonização ibérica. Bonfim teve esse "insight" a partir de um
trabalho menor de José Francisco da Rocha Pombo.
Homem de visão focada
na realidade, terminou apagado do mapa pelo establishment intelectual. Dizem
que por conta de uma polêmica com Sílvio Romero, que baixou o nível a tal ponto
que Bonfim recusou-se a polemizar.
Ficou-lhe creditado o
mérito de ter liquidado com as teorias raciais do início do século 20.
Comprovou que, ao contrário dos que achavam que a miscigenação tinha gerado uma
sub-raça, o melhor do Brasil era o brasileiro. A elite fez a Guerra do
Paraguai, o povo fez a Abolição, dizia ele.
Mais que isso. Junto
com a derrubada do mito racial, pensou um modelo de país contemporâneo. Via os
EUA, o Japão e a Argentina se desenvolvendo. Admirava o modelo americano, das
empresas ajudando na educação, mas sabia que era inviável no Brasil. Postulava,
então, uma intervenção do Estado, garantindo educação e ambiente econômico
favorável para o florescimento de empresas.
Acabou se desiludindo
completamente com a elite brasileira. Viu com ceticismo a Revolução de 30 e
morreu pouco depois, deixando algumas obras finais amargas.
Mas foi um batalhador
incansável da brasilidade em todos os níveis. Foi o criador do Almanaque
Tico-Tico. Com Olavo Bilac fez um pequeno livro de geografia para crianças, no
qual os personagens viajavam por todo o país, mostrando as diferenças entre as
diversas regiões.
Ao longo do século,
suas idéias foram captadas por poucos garimpeiros, como ouro puro no cascalho
que poluía a discussão política. Quando adolescente, o professor Antônio
Cândido recebeu de seu pai o conselho para ler o "América Latina".
"Tem um autor que está pensando o Brasil de forma diferente",
disse-lhe o dr. Aristides. Depois, em 1968 o próprio Antonio Cândido fez uma
candente defesa de Bonfim em seminário em São Paulo. Mais tarde, Bonfim foi
descoberto por Darcy Ribeiro, que se tornou um apaixonado por sua obra.
Depois mergulhou de
novo no ostracismo, até ser resgatado pela edição da Topbooks. Pouco antes de
sair do Ministério da Cultura, Francisco Weffort publicou uma brasiliana em
papel-bíblia, onde Bonfim, finalmente, foi colocado no panteão dos grandes
desbravadores da nacionalidade, ao lado de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e
Sérgio Buarque, entre outros.
(Publicado em 19 de Março de 2006, Jornal Folha de São Paulo. Extraído do link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1903200607.htm)
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