POR REINALDO JOSÉ LOPES
Para todos os efeitos, o morceguinho Desmodus rotundus
já seria uma exceção: é um
dos únicos três mamíferos
que se alimentam de sangue. Agora,
pesquisadores da UnB (Universidade de Brasília), depois de uma análise detalhada de como o organismo
do bicho funciona, descobriram que
ele é ainda mais estranho: uma criatura naturalmente "light", que não
guarda energia em forma de açúcar
ou gordura e morre se ficar três dias
sem comer.
A bióloga Mariella Bontempo Duca de Freitas, 30, acaba de concluir
seu doutorado sobre o metabolismo
do D. rotundus, e descobriu coisas
que por enquanto não têm paralelo
em nenhum outro mamífero. A insulina que animais como humanos,
elefantes e camundongos usam para
regular o nível de glicose no sangue
parece não constar do repertório
bioquímico do bicho.
"Já havia algumas pistas disso, como a própria dieta dele, que é muito
peculiar. Experimentos anteriores
tinham mostrado que essa espécie
morre depois de poucos dias de jejum, o que é muito estranho. Mamíferos
normalmente aguentam semanas ou até meses sem comer, e a alimentação
desse morcego, que é
muito rica em proteína, deveria favorecer isso", explica ela.
Coube então à bióloga a tarefa de
capturar exemplares desse vampiro
de 40 gramas e levá-los para o laboratório. Alternadamente, os morcegos bebiam sangue de boi e eram
submetidos ao jejum. O resultado
desse experimento mais simples foi
consistente com as observações anteriores: depois de 48 horas sem comer, 12% morriam; após 72 horas,
70%; e, após 96 horas, não sobrava
nenhum para contar a história.
Pâncreas preguiçoso
Um dos jeitos de saber o que realmente estava acontecendo era examinar o
fígado e o pâncreas do animal. O primeiro órgão armazena glicogênio, a
forma mais comum de
"guardar" glicose (açúcar) para o caso de uma emergência energética. Já
o outro produz insulina, o hormônio que regula a presença de glicose
no sangue dos mamíferos.
Freitas resume assim o que descobriu: "O morcego é "seco", só pele e
músculo", afirma. "Não armazena
glicogênio e praticamente não tem
gordura. Poderia usar os músculos
como reserva de energia, mas observamos que ele também não faz isso".
Para completar a análise, os pesquisadores submeteram as ilhotas
de Langerhans do bicho (células do
pâncreas que produzem insulina) a
doses elevadas de glicose. "Em outras espécies, isso causaria um aumento da produção de insulina de
600 a 1.000 vezes. Mas com ele não
houve aumento nenhum", conta a
bióloga. É quase como se a espécie
inteira tivesse diabetes -embora o
morcego, claro, não manifeste outros sintomas da doença.
A essa altura, o leitor pode estar
achando que o morceguinho é quase
tão incompetente quanto Bento
Carneiro, o atrapalhado vampiro
brasileiro criado por Chico Anysio.
Mas o nome científico do bicho dá
uma pista de que as coisas são bem
diferentes. "A palavra rotundus se
refere ao estômago dele, que é enorme e vira um barrigão quando o animal se alimenta", explica Freitas. Ele
chega a beber o equivalente ao próprio peso do corpo em sangue.
Acontece que, nos seus bandos,
que abrigam entre 13 e 20 indivíduos, um morcego recém-alimentado pode "doar" o equivalente a 12
horas de sangue para o companheiro. Ele solicita a comida tocando
com sua pata a barriga do que já se
fartou, que então regurgita o excesso. Mais tarde, se as posições se inverterem, o velho ditado "uma mão
lava a outra" entra em vigor -e minimiza-se o risco de que algum dos
D. rotundus morra de fome.
Apesar da aparente fragilidade, o
bicho é um sucesso evolutivo, estando presente em todas as áreas tropicais das Américas. "Aqui no Brasil
ele chegou até a ser considerado praga", conta Freitas. Os estudos indicam que o bicho deveria erguer as
asinhas para o céu e agradecer a presença de uma espécie recém-chegada: o boi, que deu a ele uma presa
dócil e de grande porte.
Antes da colonização, que trouxe
os bovinos para o continente, o jeito
era se contentar com herbívoros menores, menos numerosos e mais
ariscos. A suspeita é que o comportamento de partilhar sangue com o
companheiro de bando tenha surgido justamente por causa desse bufê
limitado. É claro que isso introduz
um novo paradoxo: se antes as presas eram tão raras, poderia valer a
pena guardar mais reservas -e,
portanto, produzir insulina. Segundo Freitas, o que talvez tenha
atrapalhado isso é a necessidade de permanecer leve para poder voar.
Parte do trabalho foi publicada na
revista "Comparative Biochemistry
and Physiology" de janeiro.
(Fonte: Folha de São Paulo - 08/05/2005 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0805200501.htm)
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