quarta-feira, 8 de junho de 2005

O vampiro light

POR REINALDO JOSÉ LOPES

Para todos os efeitos, o morceguinho Desmodus rotundus já seria uma exceção: é um dos únicos três mamíferos que se alimentam de sangue. Agora, pesquisadores da UnB (Universidade de Brasília), depois de uma análise detalhada de como o organismo do bicho funciona, descobriram que ele é ainda mais estranho: uma criatura naturalmente "light", que não guarda energia em forma de açúcar ou gordura e morre se ficar três dias sem comer.
A bióloga Mariella Bontempo Duca de Freitas, 30, acaba de concluir seu doutorado sobre o metabolismo do D. rotundus, e descobriu coisas que por enquanto não têm paralelo em nenhum outro mamífero. A insulina que animais como humanos, elefantes e camundongos usam para regular o nível de glicose no sangue parece não constar do repertório bioquímico do bicho.
"Já havia algumas pistas disso, como a própria dieta dele, que é muito peculiar. Experimentos anteriores tinham mostrado que essa espécie morre depois de poucos dias de jejum, o que é muito estranho. Mamíferos normalmente aguentam semanas ou até meses sem comer, e a alimentação desse morcego, que é muito rica em proteína, deveria favorecer isso", explica ela.
Coube então à bióloga a tarefa de capturar exemplares desse vampiro de 40 gramas e levá-los para o laboratório. Alternadamente, os morcegos bebiam sangue de boi e eram submetidos ao jejum. O resultado desse experimento mais simples foi consistente com as observações anteriores: depois de 48 horas sem comer, 12% morriam; após 72 horas, 70%; e, após 96 horas, não sobrava nenhum para contar a história.

Pâncreas preguiçoso
Um dos jeitos de saber o que realmente estava acontecendo era examinar o fígado e o pâncreas do animal. O primeiro órgão armazena glicogênio, a forma mais comum de "guardar" glicose (açúcar) para o caso de uma emergência energética. Já o outro produz insulina, o hormônio que regula a presença de glicose no sangue dos mamíferos.
Freitas resume assim o que descobriu: "O morcego é "seco", só pele e músculo", afirma. "Não armazena glicogênio e praticamente não tem gordura. Poderia usar os músculos como reserva de energia, mas observamos que ele também não faz isso".
Para completar a análise, os pesquisadores submeteram as ilhotas de Langerhans do bicho (células do pâncreas que produzem insulina) a doses elevadas de glicose. "Em outras espécies, isso causaria um aumento da produção de insulina de 600 a 1.000 vezes. Mas com ele não houve aumento nenhum", conta a bióloga. É quase como se a espécie inteira tivesse diabetes -embora o morcego, claro, não manifeste outros sintomas da doença.
A essa altura, o leitor pode estar achando que o morceguinho é quase tão incompetente quanto Bento Carneiro, o atrapalhado vampiro brasileiro criado por Chico Anysio. Mas o nome científico do bicho dá uma pista de que as coisas são bem diferentes. "A palavra rotundus se refere ao estômago dele, que é enorme e vira um barrigão quando o animal se alimenta", explica Freitas. Ele chega a beber o equivalente ao próprio peso do corpo em sangue.
Acontece que, nos seus bandos, que abrigam entre 13 e 20 indivíduos, um morcego recém-alimentado pode "doar" o equivalente a 12 horas de sangue para o companheiro. Ele solicita a comida tocando com sua pata a barriga do que já se fartou, que então regurgita o excesso. Mais tarde, se as posições se inverterem, o velho ditado "uma mão lava a outra" entra em vigor -e minimiza-se o risco de que algum dos D. rotundus morra de fome.
Apesar da aparente fragilidade, o bicho é um sucesso evolutivo, estando presente em todas as áreas tropicais das Américas. "Aqui no Brasil ele chegou até a ser considerado praga", conta Freitas. Os estudos indicam que o bicho deveria erguer as asinhas para o céu e agradecer a presença de uma espécie recém-chegada: o boi, que deu a ele uma presa dócil e de grande porte.
Antes da colonização, que trouxe os bovinos para o continente, o jeito era se contentar com herbívoros menores, menos numerosos e mais ariscos. A suspeita é que o comportamento de partilhar sangue com o companheiro de bando tenha surgido justamente por causa desse bufê limitado. É claro que isso introduz um novo paradoxo: se antes as presas eram tão raras, poderia valer a pena guardar mais reservas -e, portanto, produzir insulina. Segundo Freitas, o que talvez tenha atrapalhado isso é a necessidade de permanecer leve para poder voar.
Parte do trabalho foi publicada na revista "Comparative Biochemistry and Physiology" de janeiro.

(Fonte: Folha de São Paulo - 08/05/2005 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0805200501.htm)

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