quinta-feira, 2 de novembro de 2023

COMO NASCEU A APAC

CRS APAC Manhuaçu (MG).


A história da "APAC mãe" de São José dos Campos/SP, remonta a 1969, quando um amigo do advogado e jornalista Mário Ottoboni o convidou para um retiro espiritual denominado "Cursilho de Cristandade". Embora não quisesse participar desde o início, esse retiro foi o marco inicial de um novo projeto de vida.


Como secretário administrativo do município, Mário Ottoboni convidou seus companheiros de trabalho mais próximos para lhes contar sobre sua conversão e mudança de vida. Mário entronizou a imagem do Cristo crucificado em seu escritório e convidou todos a se unirem a ele em oração diária em busca de proteção, saúde e o bom desenvolvimento dos trabalhos. Além disso, ele também os convidou para o Cursilho de Cristandade, do qual todos participaram. Logo, o ambiente de trabalho havia melhorado consideravelmente.


No início e no fim de cada dia, Mário Ottoboni costumava rezar, sempre agradecendo a Deus e pedindo que lhe fosse indicado um ministério onde pudesse ser útil. Foram dois anos de orações até que numa sexta-feira quando agradecia pela semana abençoada, Deus lhe direcionou a um importante obra cristã: "Trabalhe com os prisioneiros".


Na semana seguinte, Mário Ottoboni foi à delegacia conversar com o delegado responsável pela administração da prisão da cidade, denominada Humaitá. Com quase 100 presos, era um lugar marcado por inúmeros problemas com drogas, violência, fugas e prestes a explodir. A comunidade não suportava mais as constantes fugas e o medo que permeava o dia a dia daquela cidade.


Ottoboni explicou o seu interesse em trabalhar com a recuperação de presos. Muito atento, o Delegado o alertou para o perigoso e difícil desafio que havia pela frente, mas lhe permitiu visitar a prisão e falar com as pessoas ali privadas de liberdade. Ao adentrar o espaço, ele encontrou basicamente um depósito humano com muito mau cheiro. O desafio era grande e o objetivo era melhorar a vida dos presidiários através da educação, do evangelho, do trabalho e do apoio emocional e psicológico, além de evitar abusos e injustiças contra os detentos. 

No final da visita, o Delegado já aguardando uma resposta desanimada, perguntou-lhe sobre a visita e se ele ainda iria realizar o trabalho, a quem Mário Ottoboni respondeu com convicção: "Sim. Aqui está a obra que Cristo me indicou.


Em 18 de novembro de 1972, Mário Ottoboni reuniu uma equipe composta de 15 pessoas para realizar a primeira missa no presídio Humaitá e, a partir daí, começaram a visitar essa prisão para evangelizar e dar apoio moral aos presos. Logo, nascia o primeiro significado da sigla APAC: "Amando o Próximo Amarás a Cristo".


Entre os primeiros voluntários da associação, estava Franz de Castro Holzwarth, que foi convidado para evangelizar os presos e prepará-los para o sacramento da crisma, logo tornou-se o Vice-presidente da APAC, cuidando de acolher o preso, promover palestras no presídio aos domingos, de modo a iniciar a integração deles ao método APAC.


O grupo, preocupado com os problemas carcerários, decidiu realizar pesquisas de campo nos presídios e nas faculdades da região. Inúmeras entrevistas foram realizadas com os presos para confrontar com o material colhido. Este trabalho deu a certeza de que era necessário um estudo mais profundo para se estabelecer uma metodologia consentânea com a realidade brasileira.


Tudo era empírico e não havia parâmetro ou modelo a seguir, nenhuma experiência no mundo do crime, drogas ou prisões. Os membros se organizaram para estudar a execução penal, bem como realizar visitas às prisões da região a fim de interagir com os presos e compreender suas reais necessidades e aspirações.


O trabalho se desenvolveu em busca de métodos mais adequados, pois foi concluída a inexistência de qualquer atividade estruturada na preparação da pessoa privada de liberdade para voltar ao convívio social. Tem-se então, junto ao início da APAC de São José dos Campos, também a criação de uma experiência revolucionária.


Na ocasião, o trabalho começou com 100 presos. Desses, segundo Mário Ottoboni, 97% eram provenientes de famílias enfermas, 70% eram analfabetos ou semianalfabetos, 60% tinham entre 18 e 28 anos, 98% de origem católica, 80% usuários de drogas, sendo que desses 60% praticaram crimes sob o efeito de drogas, e 75% eram reincidentes.


O início desse trabalho foi marcado por dificuldades e reprovação por parte da comunidade. Os membros do grupo precisaram resistir a duras críticas e superá-las. E foi assim que, em 15 de junho de 1974, concluiu-se que apenas um grupo fortalecido por uma entidade legalmente organizada seria capaz de superar as dificuldades presentes no cotidiano daquela prisão, o que impossibilitava qualquer iniciativa específica.


Foram oficializados os Estatutos Sociais na assembleia de fundação da entidade que levou o nome de "Associação de Proteção e Assistência aos Condenados", tornando-se, dessa forma, uma entidade civil de direito privado, não governamental e sem fins lucrativos, que daria todo o apoio e suporte para o bom desenvolvimento da APAC espiritual, com o objetivo de auxiliar a Justiça na execução da pena, recuperar o preso, proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a Justiça Restaurativa. Ainda nesse ano, a APAC foi reconhecida pela comunidade joseense como sendo de utilidade pública pela Lei Municipal nº 1.712 de 20 de setembro de 1974.


No ano de 1975, em que aconteceu também a primeira Jornada de Libertação com Cristo, o Juiz Corregedor Silvio Marques Neto, grande colaborador para fundação da APAC, editou o Provimento Judicial n.º 02 de 30 de setembro desse mesmo ano, pelo qual a APAC passa a ser oficialmente considerada como órgão auxiliar da Corregedoria dos Presídios.


Sobre o apoio do referido Juiz, Mário Ottoboni relata:

"Certa vez, alguém interessado em tumultuar o nosso trabalho, começou a agredir gratuitamente a equipe de voluntários da APAC, e nos lembramos como se fosse hoje, momento tão difícil da nossa vida de ideal, quando o Dr. Silvio Marques Neto, resolutamente mandou uma carta para a imprensa local dizendo o seguinte: 'O responsável por tudo isso sou eu; quem autorizou tudo foi o juiz corregedor dos presídios Silvio Marques Neto. A equipe que trabalha na APAC, é equipe auxiliar do juiz'. Foi esse homem com esse pulso firme, decidido que nos ajudou a desenvolver essa experiência, para chegar onde nós chegamos hoje".

Logo no início, os voluntários da APAC procuravam atender aos presos também por meio da assistência material. E, para evitar abusos nos pedidos, bem como organizá-los, era escolhido um representante de cada cela figura existente dentro da metodologia apaqueana ainda hoje é fundamental para seu bom funcionamento - quem fazia esse contato entre os presos e voluntários.


Em seguida foi criado o Conselho de Sinceridade e Solidariedade - CSS, formado exclusivamente por recuperandos, objetivando a organização, limpeza, distribuição de tarefas, e manutenção da segurança e disciplina.


No início, o recuperando era acompanhado para possibilitar uma mudança de vida. No Estágio I, ele continua preso, mas usufruindo de alguns benefícios, dentre os quais o de ser escoltado por companheiros de prisão; No Estágio II, o recuperando ficava em regime de semiliberdade, desfrutando de bolsa de estudo para mão-de-obra especializada; o estágio III era um sistema de prisão albergue. Ottoboni aclara que os estágios I e inicial eram desenvolvidos com o recuperando preso (pavilhão I) e os demais (estágios II e III) no Centro de Reintegração (pavilhão II), edificado pela própria APAC.


Em 1997, com a publicação do livro "Ninguém é Irrecuperável", as pessoas privadas de liberdade que cumprem pena na APAC passaram a ser chamadas de "recuperandos". E, com o advento da LEP 7.210/84, os estágios resultaram nos regimes fechado, semiaberto e aberto. Nota-se que 10 anos antes da legislação atual, a APAC já adotava o sistema progressivo de cumprimento de pena.

No modelo apaqueano, toda pessoa privada de liberdade passa pelo processo de recuperação dividido em etapas, em que começa recuperando a autoestima perdida e desenvolvendo a responsabilidade, que às vezes nunca teve; depois inicia o processo de construção do caráter e a convivência social, ainda que somente com os outros recuperandos, voluntários e funcionários da APAC, e a aproximação com a família; até que, após passar cuidadosamente por essas etapas, esteja pronto para reintegrar e contribuir à sociedade.

Em carta escrita no dia 03 de janeiro de 1977 ao Dr. Mário Ottoboni, então presidente da APAC, por Ubirajara Afonso Rabello, um dos primeiros ex-recuperandos da APAC, ele ressalta que: Venho, por meio desta, dizer-lhe que me sinto muito feliz por ser um novo homem. Como o senhor sabe, já estou aqui em liberdade há 1 ano e 9 meses, participando desta família sagrada, que é a APAC, Nesses meses que convivo nessa família, posso dizer que nunca, em toda minha vida, vivi tão feliz. Nunca pensei que poderia abandonar aquela vida cheia de maldades e de desventura, que é o crime. Era um jovem completamente revoltado, só vivia fazendo coisas erradas, só dava desgosto à minha família. Minha querida mãe, já bem idosa, com os cabelos completamente grisalhos de tanto sofrimento por minha causa, já não tinha mais esperança de me ver novamente num caminho honesto.

No início, a metodologia era constituída tão somente de três elementos: trabalho, religião e valorização humana, e posteriormente foram sendo agregados outros elementos até chegar à atual condição de 12 elementos.

Algum tempo depois, sem oferecer condições de segurança para manter a prisão em funcionamento, infelizmente, ela foi interditada e fechada por prazo indeterminado pelo Poder Público, impossibilitando, portanto, a continuidade do trabalho da APAC.


Contudo, o grupo da APAC liderado pelo Mário Ottoboni, mais uma vez, sem perder de vista o objetivo inicial de recuperar o preso e humanizar o cumprimento da pena, dedicou-se totalmente a motivar a sociedade de São José dos Campos para reformar o estabelecimento penal.

Devido ao grande esforço de todos, após dois anos de trabalho, a prisão Humaitá foi totalmente transformada, com novas estruturas que agora favoreciam a recuperação e a reintegração social de pessoas privadas de liberdade: salas decentes, auditório, refeitório, capela, oficinas de artesanato, setor odontológico e médico, farmácia e um espaço de trabalho para a equipe administrativa.

Com as campanhas de arrecadação da associação, foi possível a construção de um pavilhão para albergados administrado pela APAC e, com ele, a experiência do regime semiaberto, antes mesmo desse ser reconhecido pela legislação brasileira, que na época considerava apenas o regime fechado.

Em 1984, após a conclusão das reformas, os representantes das Polícias Civis e Militares da cidade e Mário Ottoboni, Presidente da APAC, foram convidados pelo Juiz Silvio Marques Neto e pelo Promotor de Justiça a uma reunião para decidir sobre a reabertura da prisão. Porém, tanto os Delegados quanto o comando da Polícia Militar, não concordaram com a reabertura da prisão e, portanto, rejeitaram a proposta de imediato, sob a justificativa de que a unidade ainda não oferecia segurança necessária.

Considerando o papel de liderança na reforma e a excelência no trabalho de assistência promovido pela APAC por tantos anos, as autoridades perguntaram ao Presidente da entidade se sua equipe teria interesse em administrar a prisão sem o concurso da polícia. Mário Ottoboni pediu uma semana para consultar sua equipe, a que todos aceitaram o desafio prontamente.

Por meio da Portaria nº 03, de 20 de março de 1984, a APAC assumiu a administração total do presídio Humaitá em cooperação com o Poder Judiciário. Surgiu assim, a primeira prisão no Brasil e no mundo, administrada por uma organização da sociedade civil com o apoio das próprias pessoas privadas de liberdade. Aberta com cerca de 30 recuperandos, logo alcançou gradualmente sua capacidade total de 175 pessoas em regimes fechado e semiaberto.

A gestão da APAC de São José dos Campos e a aplicação correta da metodologia levou à redução significativa da reincidência, tornando-a um estabelecimento modelo e despertando interesse de autoridades do Brasil e do exterior.

Em 1986, a APAC foi contatada por uma entidade internacional, a Prison Fellowship International (PFI), que queria conhecer esse modelo revolucionário. Quando visitou a APAC de São José dos Campos, o fundador da PFI, Charles Colson, deixou ali a seguinte mensagem: "Esta é a única prisão da qual não tive vontade de sair. A APAC é um milagre". Isso fez com que o Método fosse divulgado por mais de cem países e os voluntários da APAC frequentassem congressos e seminários internacionais para apresentar a metodologia, bem como receber delegações do mundo todo.


II Congresso Nacional das APACS.


Com esse reconhecimento internacional, em 1990, ocorreu a Conferência Latino- americana, na cidade de São José dos Campos, na qual participaram 21 países interessados no trabalho da APAC. Em 1991, foi realizada uma pesquisa científica acerca da eficácia da metodologia APAC, publicado posteriormente nos Estados Unidos afirmando que o método poderia ser aplicado em qualquer país do mundo. 

Em 1993, a BBC (British Broadcasting Corporation) de Londres produziu um documentário, distribuindo-o em diversos países da Europa e da Ásia. Enquanto isso no Brasil, pouco a pouco, iam surgindo dezenas de APACS.


A APAC de São José dos Campos apesar de não ter recebido recursos financeiros do Poder Público, funcionou com excelência durante 25 anos com o apoio de inúmeros voluntários, servindo de modelo e referência para expansão da metodologia no Brasil e no exterior, tendo encerrado suas atividades no dia 20 de outubro de 1999 por razões diversas.


Felizmente, antes de seu encerramento, várias de suas sementes germinaram em inúmeras cidades ao redor do mundo, tendo encontrado terreno fértil no estado de Minas Gerais, graças aos fundadores da APAC de Itaúna e do apoio do Tribunal de Justiça do referido estado.


(Extraído de Apostila Curso de Formação de Voluntários / APAC: a face humana das prisões, p. 06 a 10)


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