sexta-feira, 12 de maio de 2023

Caráter Corroído

 Thomaz Wood Jr.

O reino encantado da nova economia, movido a inovações rápidas e viabilizado pela flexibilidade do trabalho, esconde porões úmidos e sombrios

 

"Só os paranoicos sobrevivem". A frase, geralmente atribuída ao celebrado Andy Grove, seria cômica se não fosse trágica. Slogan materializado com zelo missionário, evoca sem culpa a racionalidade instrumental do mundo corporativo. E tome clichê: "Pressionados por acionistas, clientes e concorrentes, as empresas que quiserem sobreviver precisam abraçar com fervor a causa da mudança. Cada momento e cada  ação devem ser guiados por princípios de flexibilidade e inovação. Apegado à velha visão e negócios? Desista, logo ela será copiada e você terá de inventar outra. Orgulhoso de um novo produto? Cuidado! O sucesso cega. O preço da vantagem competitiva é a eterna vigilância". E isso não vale apenas para as empresas. Afinal, no reino encantado da nova economia, todos devem ser apóstolos da mudança e caminhar alegres e saltitantes para se tornar agentes econômicos livres e autônomos. Ou não? É claro que não se deve negar as alternativas abertas pelos processos de mudança: temos hoje maior liberdade para definir nosso destino profissional. Mas o aprendizado apenas começou.  Para muitos de nós, a flexibilidade do trabalho é atraente e pode vir associada com benefício substantivos: não precisar se expor a  chefes neuróticos e incompetentes, ser reconhecido e remunerado pelo próprio valor e controlar o próprio tempo.

Tudo isso é sedutor, mas tem seus limites: primeiro, você pode estar substituindo seu antigo e mal-amado chefe por clientes piores que ele; segundo, talvez seja ingenuidade excessiva achar  que o mercado é uma entidade racional, capaz de perceber e pagar a fortuna que você pensa que vale;  terceiro, você vai logo perceber que controlar seu próprio tempo é uma tarefa ingrata, e que, para agentes "livres", sábados e domingos costumam ser dias normais de trabalho. Donos do nosso tempo, utilizamos a prerrogativa do controle contra nós mesmos. Paradoxo da liberdade autovigiada: dela fazemos uso para aperfeiçoar antigos mecanismos de escravidão.
Além disso, você vai logo perceber que a flexibilidade que as empresas estão hoje exigindo não é exatamente aquela flexibilidade antiga, que significava mudar temporariamente, sem perder as características fundamentais e a identidade. Hoje, flexibilidade relaciona-se a um estado permanente de mudança. Ser flexível é ser capaz de romper e construir relações com rapidez e facilidade. Afinal, "só os paranoicos sobrevivem".

Esta é uma das muitas faces ocultas da "nova economia", discutidas no último livro de Richard Sennet. Lançado em 1998 nos Estados Unidos e um ano mais tarde no Brasil, A Corrosão do Caráter (Rio de Janeiro, Editora Record) oferece um contraponto provocativo ao massacre dos livros de pop-management, que inundam as livrarias de aeroportos e as estantes de executivos. Até a Harvard Business Review, o manual do escoteiro mirim dos executivos, uma revista bimestral generosa com gurus, panacéias gerenciais e ilusionismos diversos, dedicou-lhe espaço nobre: nada menos que seis páginas!

O objetivo de Sennet é investigar as conseqüências do trabalho flexível sobre o indivíduo. O argumento é límpido e contundente: as exigências de polivalência e flexibilidade, a duração cada vez menor e o vínculo cada vez mais tênue das relações de trabalho enfraquecem valores como o compromisso, a confiança e a lealdade, todos fundamentais para a consolidação do caráter. O desenvolvimento do caráter — e também da identidade — depende dos relacionamentos e das ligações que estabelecemos com outras pessoas e com as instituições; depende, em suma, das ligações que cultivamos com o mundo. O mesmo vale para a identidade. A identidade é um processo de construção de algo durador, único e distintivo, o desenvolvimento de uma narrativa coerente de vida, a criação de uma voz própria.

O fato é que, neste mundo organizacional, não existe tempo ou razão para relacionamentos duradouros. O foco é o curto prazo. Também não há espaço para relações desinteressadas. Tudo deve ter uma finalidade. Afinal, precisamos de resultados rápidos. Se o velho sistema, que permeava as organizações tradicionais, baseava-se no controle rígido e onipresente da supervisão, o novo baseia-se na pressão e no controle exercidos pelos pares. Cria-se, na prática, um teatro de aparências, onde habita o "homem irônico", um ser sem ligações, que não leva a sério nem a si nem aos outros. Sua ironia é passiva e acomodada. O "homem irônico" não questiona ou desafia a ordem imposta. Ele apenas a contempla, com resignação e desarmada mordacidade.
Alguns livros têm carreiras meteóricas. Outros, parecem seguir um caminho subterrâneo até a popularidade. O sucesso subterrâneo de A Corrosão do Caráter mostra que existe grande desconforto na alta modernidade que, a cada vez que alguém o racionaliza e expressa, imediatamente faz-se eco.


THOMAZ WOOD JR. é professor dos cursos de pós-graduação da FGV-EAESP e consultor de empresas nas áreas de estratégia e transformação organizacional. Colabora regularmente com a Revista de Administração de Empresas e com Carta Capital. 
E-mail: twood@fgvsp.br


(Nota: Este artigo foi originalmente publicado na revista Carta Capital, de 6 de dezembro de 2000.)


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