O
reino encantado da nova economia, movido a inovações rápidas e viabilizado pela
flexibilidade do trabalho, esconde porões úmidos e sombrios
"Só
os paranoicos sobrevivem". A frase, geralmente atribuída ao celebrado Andy
Grove, seria cômica se não fosse trágica. Slogan materializado com zelo missionário,
evoca sem culpa a racionalidade instrumental do mundo corporativo. E tome
clichê: "Pressionados por acionistas, clientes e concorrentes, as empresas
que quiserem sobreviver precisam abraçar com fervor a causa da mudança. Cada
momento e cada ação devem ser guiados por princípios de flexibilidade e
inovação. Apegado à velha visão e negócios? Desista, logo ela será copiada e
você terá de inventar outra. Orgulhoso de um novo produto? Cuidado! O sucesso
cega. O preço da vantagem competitiva é a eterna vigilância". E isso não
vale apenas para as empresas. Afinal, no reino encantado da nova economia,
todos devem ser apóstolos da mudança e caminhar alegres e saltitantes para se
tornar agentes econômicos livres e autônomos. Ou não? É claro que não se deve
negar as alternativas abertas pelos processos de mudança: temos hoje maior liberdade
para definir nosso destino profissional. Mas o aprendizado apenas começou.
Para muitos de nós, a flexibilidade do trabalho é atraente e pode vir associada
com benefício substantivos: não precisar se expor a chefes neuróticos e incompetentes,
ser reconhecido e remunerado pelo próprio valor e controlar o próprio tempo.
Tudo
isso é sedutor, mas tem seus limites: primeiro, você pode estar substituindo
seu antigo e mal-amado chefe por clientes piores que ele; segundo, talvez seja
ingenuidade excessiva achar que o mercado é uma entidade racional, capaz
de perceber e pagar a fortuna que você pensa que vale; terceiro, você vai
logo perceber que controlar seu próprio tempo é uma tarefa ingrata, e que, para
agentes "livres", sábados e domingos costumam ser dias normais de
trabalho. Donos do nosso tempo, utilizamos a prerrogativa do controle contra
nós mesmos. Paradoxo da liberdade autovigiada: dela fazemos uso para
aperfeiçoar antigos mecanismos de escravidão.
Além disso, você vai logo perceber que a flexibilidade que as empresas estão
hoje exigindo não é exatamente aquela flexibilidade antiga, que significava
mudar temporariamente, sem perder as características fundamentais e a
identidade. Hoje, flexibilidade relaciona-se a um estado permanente de mudança.
Ser flexível é ser capaz de romper e construir relações com rapidez e facilidade.
Afinal, "só os paranoicos sobrevivem".
Esta
é uma das muitas faces ocultas da "nova economia", discutidas no
último livro de Richard Sennet. Lançado em 1998 nos Estados Unidos e um ano
mais tarde no Brasil, A Corrosão do Caráter (Rio de Janeiro, Editora
Record) oferece um contraponto provocativo ao massacre dos livros de pop-management,
que inundam as livrarias de aeroportos e as estantes de executivos. Até a Harvard
Business Review, o manual do escoteiro mirim dos executivos, uma revista bimestral
generosa com gurus, panacéias gerenciais e ilusionismos diversos, dedicou-lhe
espaço nobre: nada menos que seis páginas!
O
objetivo de Sennet é investigar as conseqüências do trabalho flexível sobre o
indivíduo. O argumento é límpido e contundente: as exigências de polivalência e
flexibilidade, a duração cada vez menor e o vínculo cada vez mais tênue das
relações de trabalho enfraquecem valores como o compromisso, a confiança e a
lealdade, todos fundamentais para a consolidação do caráter. O desenvolvimento
do caráter — e também da identidade — depende dos relacionamentos e das ligações
que estabelecemos com outras pessoas e com as instituições; depende, em suma,
das ligações que cultivamos com o mundo. O mesmo vale para a identidade. A
identidade é um processo de construção de algo durador, único e distintivo, o
desenvolvimento de uma narrativa coerente de vida, a criação de uma voz
própria.
O
fato é que, neste mundo organizacional, não existe tempo ou razão para relacionamentos
duradouros. O foco é o curto prazo. Também não há espaço para relações
desinteressadas. Tudo deve ter uma finalidade. Afinal, precisamos de resultados
rápidos. Se o velho sistema, que permeava as organizações tradicionais,
baseava-se no controle rígido e onipresente da supervisão, o novo baseia-se na
pressão e no controle exercidos pelos pares. Cria-se, na prática, um teatro de
aparências, onde habita o "homem irônico", um ser sem ligações, que
não leva a sério nem a si nem aos outros. Sua ironia é passiva e acomodada. O
"homem irônico" não questiona ou desafia a ordem imposta. Ele apenas
a contempla, com resignação e desarmada mordacidade.
Alguns livros têm carreiras meteóricas. Outros, parecem seguir um caminho
subterrâneo até a popularidade. O sucesso subterrâneo de A Corrosão do Caráter
mostra que existe grande desconforto na alta modernidade que, a cada vez que
alguém o racionaliza e expressa, imediatamente faz-se eco.
THOMAZ WOOD JR. é professor dos cursos de pós-graduação da
FGV-EAESP e consultor de empresas nas áreas de estratégia e transformação organizacional.
Colabora regularmente com a Revista de
Administração de Empresas e com Carta
Capital.
(Nota: Este artigo foi originalmente publicado na revista Carta Capital, de 6 de dezembro de 2000.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário