domingo, 30 de abril de 2023

E aí, comeu?

(Zulmira Furbino)

O celular treme num toque tímido, mas audível. “Preciso falar com você. Me liga ou me manda um torpedo se não puder”. É sábado, faz frio na sombra, mas no sol a pele queima. A mensagem o arranca do momento relax de tarde ensolarada, cheiro de mar, tira-gosto e bons vinhos entre amigos. Olha o visor do aparelho. O SMS é dela.

Ela, a dona do sorriso que parece ter vindo daquele lote de fábrica no qual está especificado EPDB – Especial Para Desmontar Brutamontes. Quando chegou, a moça de ar inatingível causou frisson entre os marmanjos do hospital. Desde então, ele vem usando de toda a paciência e persistência do mundo na tentativa de se aproximar. Oito meses. Mais precisamente oito meses e 21 dias. Esse foi o tempo que levou para receber aquela mensagem.

A essa altura, já gastou todo o repertório de cantadas assimilado em uma década e meia de boteco com os amigos, sem contar a própria prática. Nenhuma tinha surtido o menor efeito. E agora que o sinal verde foi dado, não sabe o que fazer, não tem ideia de como avançar no território inimigo.

Para evitar a gozação, se afasta um pouco do local onde estão os amigos e retorna a mensagem com um telefonema. Não gosta de SMS (é míope, não usa óculos em ocasiões sociais e por isso a vista embaralha na hora de ler e digitar).

– Oi, tudo bem? Tu me ligou?

– Liguei.

– É que você tinha dito que se eu quisesse sair pra jantar a gente podia…

– Claro, claro….

– A gente podia ir hoje, se você puder. Estou livre a partir das oito da noite.

– Tá feito.

Meio bolado, desliga o celular, tomado por um pensamento fixo. É hoje ou nunca.

– Adivinha quem me mandou um torpedo?

– Quem?

– Ela.

– Ah, tu tá de sacanagem.

– É sério. Vamos sair pra jantar hoje.

Um silêncio invejoso paira no ar e é seguido por urros grotescos e zoações machistas.

– Pegador!, Galinha!, Neandertal das galáxias!

Os amigos, como ele, são jovens médicos que também trabalham no hospital. Todos com uma carreira promissora no horizonte.

– Onde que eu levo a guria?

– Se tu quiser impressionar, tu vai no Antiquarius. Não existe probabilidade de tomar um toco depois de um jantar lá.

Fazendo um cálculo por alto, um jantar no restaurante Antiquarius, localizado a dois quarteirões da praia, no Leblon, pode custar de R$ 400 (o básico) a mais de R$ 15 mil, dependendo da exigência do freguês. Chega à conclusão de que está disposto a gastar entre R$ 1.500 e R$ 2.000.

– Ih! Tá apaixonado. Se precisar, pede socorro!, a galera continua a zoar.

Nove da noite e já está na porta do prédio na Otaviano Hudson, esquina com Toneleros, em Copacabana. Ela aparece radiante, de vestidinho preto, um palmo acima dos joelhos, botas de cano curto. Chega ajeitando o cabelo.

– Comida portuguesa e um bom vinho. Topa?

– Claro.

No Antiquarius, o ambiente é sofisticado, confortável e aristocrático. A atração da casa são as nobres receitas portuguesas. A carta de vinhos é unanimidade e conta com os melhores produtores do mundo. À meia luz, escolhe o vinho. R$ 1.112, um preço inatingível para comuns mortais. Ele se sente satisfeito e não disfarça uma ponta de orgulho. E isso é só o começo.

No fim do jantar romântico, o garçom apresenta a conta: R$ 11.419.

– Tem um erro. O valor é muito alto. Confere, por favor.

– Senhor, a garrafa de vinho custa R$ 11.112.

Bate um constrangimento que é quase um estado sólido. Não tem dinheiro para pagar a conta e o valor ultrapassa o limite do cartão de crédito. A saída é parcelar a quantia em dez cheques de R$ 1.114,90, mas como só tem sete folhas ainda precisa pedir três emprestadas à acompanhante.

A gata vai embora de táxi e ele volta pra casa sozinho.

O celular treme num toque tímido, mas audível. Ele pensa, aliviado: é ela! Olha o visor, mas o nome que aparece é o do Alfredão. A mensagem diz:

“E aí, comeu?”

Fonte: https://zulmirafurbino.wordpress.com/2013/07/15/e-ai-comeu/

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