Maria Lacerda de Moura Uma
anarquista individualista brasileira
Por Adelaide Gonçalves¹ e Jorge Silva²
“Sou
“indesejável”, estou com os individualistas livres, os que
sonham
mais alto, uma sociedade onde haja pão para todas as
bocas,
onde se aproveitem todas as energias humanas, onde se possa
cantar
um hino à alegria de viver na expansão de todas as forças
interiores,
num sentido mais alto – para uma limitação cada vez
mais
ampla da sociedade sobre o indivíduo.”
Maria Lacerda de Moura
Um dos temas da história do movimento operário e, particularmente, do
anarquismo, que até hoje tem sido pouco pesquisado é o da presença
feminina. Na história do
anarquismo, e do socialismo no seu conjunto, a atuação das mulheres, mesmo não
sendo rara, é significativamente menor do que a masculina. Existem razões
de sobra que explicam esse fato. Em primeiro lugar, na composição do operariado
que viria a gerar esses movimentos, a percentagem de mulheres foi, ao longo de
muitas décadas, muito inferior à dos homens. Um fato ainda mais evidente nos
círculos da intelectualidade independente que esteve associada ao nascimento
das idéias socialistas. Por outro lado, a cultura familiar reacionária, ou
revestida de valores conservadores, estava bem presente no mundo operário do século
XIX e primeira metade do século XX, fazendo com que as mulheres acabassem,
mesmo nos movimentos sociais, adotando - ou sendo empurradas em alguns casos -
para uma posição subalterna, ligada a velhos preconceitos associados a idéias
como “fragilidade feminina”, papel “maternal” das mulheres ou da sua
“passividade”.
É certo que em muitos casos era tão-só a histórica divisão de papéis
sociais que relegava as mulheres para uma função doméstica que contrariava, ou
dificultava, a sua militância social. Talvez por isso, entre as mulheres que
mais se destacaram no movimento anarquista, exista um número importante de
personagens femininas que optaram por uma vida pessoal independente, onde o
casamento e uma relação familiar mais tradicional, ou até a maternidade, foram
recusadas em nome da liberdade e da autonomia.
Evidente que o papel das companheiras e cúmplices - sentimentais e de
ideias - dos anarquistas, e dos militantes operários em geral, foi de tal forma
relevante que constituiu, por si mesmo, uma destacada presença feminina no movimento. Ainda que um feminismo
pseudo-radical, incapaz de situar histórica e culturalmente as relações de
gênero, veja nessa relação ou em aspectos tradicionais das relações dentro das
famílias dos militantes operários e anarquistas a prova irrefutável da
manutenção de valores machistas e de sujeição das mulheres nos movimentos
anti-burgueses.
A cultura operária anti-capitalista sempre procurou valorizar os direitos
intrínsecos e específicos das mulheres. Era também comum, na imprensa e
literatura libertárias, a crítica das instituições familiares, do casamento
burguês e a defesa do amor livre3 , tematização que alguns pensadores
individualistas chegaram a dar um relevo especial. Foi o caso de Emile Armand4
e Han Ryner5 . Mulheres libertárias, como Emma Goldman6 , também deram uma
particular atenção ao tema.
Mesmo sendo assim, há que se reconhecer, a presença efetiva, marcante e
autônoma das mulheres, no movimento operário e no anarquismo, foi limitada. O
que não impediu que em alguns setores operários, particularmente no têxtil,
tecelãs e costureiras tivessem um papel determinante na organização e nas lutas
sindicais, a partir das quais se destacaram importantes militantes libertárias
e socialistas que contribuíram para o anarcosindicalismo e para o sindicalismo
revolucionário internacional. É no contexto da época e das sociedades onde
desenvolveram sua militância que poderemos explicar as diferenças de presença,
de importância ou de destaque entre mulheres e homens no movimento operário
anarquista ou no movimento socialista em geral. Por essa mesma razão, não é de
estranhar a ausência de um número mais significativo de teóricas do anarquismo
e do socialismo, principalmente no século XIX.
Apesar de tudo isso, nomes como Mary Wollstonecraft7, companheira de
William Godwin8 e precursora do feminismo, Flora Tristán9 , Louise
Michel10 , Emma Goldman, Voltarine de Cleyre11 , Lucy Parsons12 , Tereza Mané13
, Federica Monteseny14 , May Picqueray15 , Giovanna Caleffi16 e Luce Fabri17 ,
deixaram profundas marcas nos movimentos sociais e no pensamento libertário de
seus respectivos países. Em Portugal, alguns nomes se destacam: Miquelina
Sardinha18 , Virgínia Dantas e Luisa Franco Adão. No Brasil, Edgar
Rodrigues, na sua obra Os Companheiros, que reúne em cinco volumes uma ampla
pesquisa biográfica de militantes anarquistas, lista o nome de 52 mulheres
que tiveram especial relevância no movimento social, no período que vai do
final do século XIX à metade do século XX.
Entre estas mulheres, Maria Lacerda de Moura merece um lugar à parte, não
só pela sua personalidade combativa, pela sua múltipla atividade de escritora e
conferencista, como pelo destaque que chegou a ter, não só no Brasil, como em
outros países da América do Sul, tendo os seus textos divulgados em
Portugal, na França e, principalmente, na Espanha.
Nascida em Manhuaçu, Minas Gerais, a 16 de maio de 1887, desde jovem se
interessou pelo pensamento social e pelas ideias anticlericais. Formou-se na
Escola Normal de Barbacena, em 1904, começando logo a lecionar nessa mesma
escola. Inicia então um trabalho junto às mulheres da região, incentivando um
mutirão de construção de casas populares para a população carente da cidade.
Participou da fundação da Liga Contra o Analfabetismo. Como educadora, adotou a
pedagogia libertária de Francisco Ferrer Guardia19 . Após se mudar para São
Paulo, começou a dar aulas particulares e a colaborar na imprensa operária e
anarquista brasileira e internacional. No jornal A Plebe (SP) escreveu
principalmente sobre pedagogia e educação. Seus artigos foram também publicados
por jornais independentes e progressistas, como O Combate, de São Paulo e O
Ceará (1928), de Fortaleza, de onde se extraiu o texto Feminismo? Caridade?,
bem como em diferentes jornais operários e anarquistas de todo o Brasil.
Em fevereiro de 1923, lançou a revista Renascença, publicação cultural
divulgada no movimento anarquista e entre setores progressistas e
livre-pensadores. A importância desta militante pode ser avaliada, entre
outros, pelo fato de que, em 1928, jovens estudantes e trabalhadores paulistas
terem invadido o jornal pró-fascista italiano Il Piccolo, como resposta a um
artigo que caluniava violentamente a pensadora libertária. Na mesma época, Rachel
de Queiroz20 polemizou acaloradamente, nas páginas d’ O Ceará, com um
jornalista cearense que atacou Maria Lacerda.
Ativa conferencista, tratava de temas como educação, direitos da mulher,
amor livre, combate ao fascismo e antimilitarismo, tornando-se conhecida não só
no Brasil, mas também no Uruguai e Argentina, onde esteve convidada por grupos
anarquistas e sindicatos locais.
Entre 1928 e 1937, a ativista libertária viveu numa comunidade em
Guararema (SP), no período mais intenso da sua atividade intelectual, tendo
descrito esse período como uma época em que esteve “livre de escolas, livre de
igrejas, livre de dogmas, livre de academias, livre de muletas, livre de
prejuízos governamentais, religiosos e sociais”.
Maria Lacerda de Moura pode ser considerada uma das pioneiras do
feminismo no Brasil e uma das poucas ativistas que se envolveu diretamente com
o movimento operário e sindical. Entre os seus numerosos livros destacam-se: Em
torno da educação (1918); A mulher moderna e o seu papel na sociedade atual
(1923); Amai e não vos multipliqueis (1932); Han Ryner e o amor plural (1928) e
Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital (s/d).
O texto de Maria Lacerda de Moura que transcrevemos de seguida foi
publicado no jornal independente O Ceará (1928), de Fortaleza, a pedido da
então jovem escritora Rachel de Queiroz, que se consagraria como uma das
grandes romancistas brasileiras contemporâneas. Esse texto expressa o
pensamento de Maria Lacerda de Moura sobre o feminismo e sua visão anarco-individualista.
Uma filosofia libertária bastante influenciada por Han Ryner, um pensador
libertário original que se destacou em França como ativista anti-militarista,
anti-clerical e defensor do amor livre. Outra influência notória no texto é a
de Emile Armand.
É certo que ele não representa todo o pensamento da anarquista
brasileira. Como todo militante, com larga atividade literária, passou por
diferentes fases e sua reflexão abordou temas tão diversos como a guerra, o
malthusianismo e a pedagogia libertária.
Polêmica na literatura e na militância, Maria Lacerda de Moura passou
pela Maçonaria e pela Fraternidade Rosa Cruz, com quem rompeu denunciando-a
como agente do nazismo. Atravessou algumas fases de maior envolvimento social e
outras de isolamento, umas de otimismo e outras de declarado pessimismo. E, se
no fim da vida, permanecia num certo pessimismo, isso deve-se certamente às
divergências e rupturas que, no fim da década de 20, confrontavam anarquistas e
comunistas ao mesmo tempo em que acontecia a ameaçadora ascensão do fascismo.
No entanto, quando após a fundação do Partido Comunista dirigentes desse
partido, fizeram várias tentativas para aliciá-la, a pensadora libertária
recusou-se a abandonar sua visão de mundo, mantendo até ao fim da vida o seu
anarquismo individualista21.
Maria Lacerda de Moura é praticamente desconhecida no Brasil, onde um
certo feminismo parece querer ocultar aquela que seria uma das primeiras e mais
importantes ativistas das causas das mulheres, mas que nunca reconheceu no
Estado, no Direito e no acesso profissional burguês a sua causa. Na verdade,
isso acontece porque, antes de tudo, via generosamente a luta feminista como
parte integrante do combate social compartilhado igualmente por homens e
mulheres engajados na luta pela eliminação de toda exploração, injustiça e
preconceito. Talvez por isso mesmo, ela seja ainda um símbolo incômodo para
toda a sociedade conservadora, até para o atual conservadorismo feminista, mero
arrivismo social de classe média em busca do seu lugar ao sol no Estado e no
capitalismo, tal como o foi para as sufragistas da classe média e das elites do
seu tempo. A militante anarquista morreu em 1945, no Rio de Janeiro.
Notas:
1 Historiadora e
professora da Universidade Federal do Ceará.
2 Doutor em nada, militante
anarquista e colaborador da imprensa libertária
3 Giovanni Rossi (1856-1943),
idealizador da Colônia Cecília fundada em 1891 por anarquistas italianos no sul
do Brasil, chegou a escrever o livro Un Episodio d’amore nella Colonia Cecilia,
onde analisa a sua experiência pessoal de um amor plural e as dificuldades de
superação das relações e moral convencional numa comunidade libertária.
4 Emile Armand (1872-1963).Um dos
mais importantes militantes anarquistas individualistas franceses. Autor de L’
Iniciation Individualiste Anarchiste e Anarquismo e Individualismo.
5 Han Ryner (1861-1938).
Pensador e escritor anarquista individualista francês nascido na Argélia.
Pacifista, anticlerical e defensor do amor livre. Autor de O Pequeno Manual
Individualista e de O Quinto Evangelho, exerceu grande influência sobre Maria
Lacerda Moura, mais visível no seu livro Han Ryner e o Amor Plural, de
1933.
6 Emma Goldman (1868-1940). Militante
e pensadora anarquista de origem russa, emigrou para os EUA em 1886. Em 1919
foi expulsa para a Rússia, mas logo teve de abandonar o país por discordar do
que denominava a evolução autoritária da Revolução Soviética. Viveu em vários
países e teve um importante papel no apoio à Revolução Espanhola de 1936. Viria
a falecer no Canadá.
7 Mary Wollstonecraft
(1759-1797). Ativista libertária inglesa, companheira de William Godwin e
autora do livro precursor do feminismo Vindicatin of the Rights of Woman, editado
em 1792.
8 William Godwin (1756-1835).
Considerado um dos primeiros pensadores anarquistas modernos foi o autor do
livro Investigação Acerca da Justiça Política, editado em 1873.
9 Flora Tristán (1803-1844).
Libertária, de pais peruanos, nascida em Paris. Preocupada com o problema
social, engajou-se nas lutas operárias e escreveu, em 1843, a União Operária,
uma das primeiras propostas de organização internacional dos
trabalhadores.
10 Louise Michel (1833-1905).
Professora e militante anarquista francesa. Participou da Comuna de Paris e
acompanhou de forma ativa o crescimento do movimento operário e do anarquismo
francês.
11 Voltairine de Cleyre
(1866-1912). Uma das mais ativas agitadoras e oradoras anarquistas americanas,
colaborou na revista Mother Earth e destacou-se por tratar dos temas referentes
às mulheres e ao amor livre.
12 Lucy Parsons (1853-1942).
Militante operária e anarquista americana. Companheira de Albert Parsons, um
dos mártires de Chicago, continuou sendo uma ativa militante operária até ao
final da sua vida, dando destaque aos temas da mulher e do racismo.
13 Teresa Mané (1865-1939).
Militante anarquista e professora, ficou conhecida pelo pseudônimo de Soledad
Gustavo, foi companheira de Federico Urales e mãe de Federica Montseny, que
constituíram uma das famílias mais ativas no movimento anarquista
espanhol.
14 Federica Montseny (1905-1994).
Uma das mais conhecidas militantes anarquistas espanholas. Militante da CNT,
durante a Revolução de 1936 integrou o governo republicano como ministra da
saúde, por decisão majoritária, embora polêmica do movimento anarquista.
15 May Picqueray (1898-1983).
Anarquista individualista e ativa pacifista francesa.
16 Giovanna Caleffi (1897-1962).
Militante anarquista italiana, companheira de Camilo Berneri, assassinado pelos
estalinistas em Barcelona. Continuou sua militância em Itália até morrer.
Sua filha Maria Louise Berneri, foi também militante anarquista.
17 Luce Fabri (1908-). Ativa
militante anarquista uruguaia ainda viva, filha de Luigi Fabri (1877- 1935) um
dos mais ativos anarquistas italianos deste século.
18 Miquelina Sardinha
(1902-1966). Professora e militante anarquista portuguesa, companheira de
Francisco Quintal (1898-1987) ativo militante anarco-sindicalista.
19 Francisco Ferrer y Guardia
(1859-1909). Pedagogo e militante anarquista espanhol que desenvolveu os
princípios da Escola Moderna baseada no ensino misto, laico, crítico e
científico. O seu método e filosofia de educação espalharam-se por diversos
países entre os quais o Brasil. O movimento operário, principalmente o
anarcossindicalista, criou escolas nos sindicatos baseadas no pensamento de
Ferrer. Francisco Ferrer viria a ser fuzilado, em 1909, em razão das suas
ideias e da sua militância social.
20 Rachel de Queiroz (1910-).
Romancista e cronista brasileira nascida no Ceará. Autora dos romances: O
Quinze; João Miguel; Caminho das Pedras e Memorial de Maria Moura, entre
outros. Esteve próxima às posições trotskistas e hoje gosta de se definir como
“uma anarquista doce”.
21 Embora no livro de Míriam
Leite, Outra face do feminismo, se tente provar a aproximação de Maria Lacerda
de Moura do Partido Comunista, Otávio Brandão, dirigente comunista da época, e
ex-anarquista, desmente na sua autobiografia, Combates e Batalhas (São Paulo:
Alfa-Omega, 1978), que a sua tentativa tenha resultado.
Bibliografia consultada:
- Combates e Batalhas, Otávio
Brandão. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1978.
- Os Companheiros (vol 1 a 5),
Edgar Rodrigues. Florianópolis: Editora Insular, 1997-1998.
- Os Libertários, Edgar
Rodrigues. Petrópolis: Editora Vozes, 1988.
- Outra Face do Feminismo: Maria
Lacerda de Moura, Míriam Lifchtitz Moureira Leite. São Paulo: Editora Ática,
1984. - Jornal O Ceará, Fortaleza, 1928
FONTE: Revista UTOPIA, Revista
Anarquista de Cultura e Intervenção, nº 09, 1999.
Jornal das Montanhas, edição de 15 de agosto de 2009;
Pesquisa: Thomaz Júnior.
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