Ninguém precisa ser hipocondríaco (embora possa ser, claro) para ficar preocupado com a saúde da língua. O discurso também adoece gravemente, perde sentido como um enfermo perde vitalidade. Quem paga a conta do hospital é a inteligência coletiva. O paralelo com o corpo humano não é forçado, assim como não é despropósito alguém encarar essa guerra em termos de higiene: existe um lugar do organismo social que está o tempo todo pegando nossa linguagem para transformá-la – essa é a sua função – em detrito, porcaria. Lutar contra essa obra é trabalho para a vida toda. À menor bobeada, o ar fica irrespirável, os germes tomam conta, cresce a ameaça de morte cerebral. Vamos chamar o tal órgão de Departamento de Publicidade e Marketing. Só para efeito de ilustração.
Pode parecer um paradoxo, mas é nas prateleiras de produtos de higiene e limpeza nos supermercados que os sintomas da doença se manifestam mais claramente. A nova fórmula do Limpol tem Triclosan – não confundir com o Triclene do creme dental Aquafresh. Já a do Pato Purific contém Germinex, que por sua vez não deve ser misturado com o novíssimo Germ Defense da pasta Colgate. O Ajax ataca de Luminol, a fralda descartável Pampers traz o exclusivo Demarcrem e o sabão em pó Omo apresenta, dependendo da versão e da cor da caixa, o revolucionário Colorplus de última geração, o sistema Bleach, o sistema duplo de ativos ou o sistema bio-ativo. Haja sistema. É ou não é o caso de dizer: uau?
O que significa tudo isso? Nada, aí é que está o ponto. Quem achar que rastro de lesma é mensagem secreta vazada em tintura de prata e tentar ler essa linguagem pseudopoética e pseudocientífica – numa palavra, cabalística – como um discurso coerente enlouquecerá. Não, ao cloro ativo do desinfetante Veja não corresponde um cloro passivo, assim como não há um Macrocooler que possa ser apresentado como antípoda do Microcooler da goma de mascar Vivident (a das “micropartículas de sabor”). Escolher entre as rações de cachorro Champ, com Nutriflora, e Pedigree, com Fortivil, não é uma escolha de Sofia, é uma escolha estúpida. Um tédio. Melhor perguntar ao totó qual das duas lhe sabe melhor à língua: há mais filosofia neste sarro do que em toda a moral do capitalismo.
O leitor sensato pode estar pensando, a essa altura, que se trata apenas de implicância. Que mal pode haver nas estratégias de venda dos pobres (pobres no sentido figurado, claro) empresários do ramo de higiene, limpeza, ração animal? Bom, um grande mal propriamente não há, só o da poluição da língua. Mas todo esse papo furado é um símbolo tão perfeito da fabricação de sentidos falsos, da intimidação pelo esoterismo, da embromação da boa fé pública – qualidades que, como se sabe, estão longe de ser exclusivas de publicitários – que eu não resisti. O que é a velha Banda Diagonal Endógena do Banco Central senão parente da fórmula de Maxx Hidratação do Wellapon?
Contudo, será que essas bobagens não fazem mesmo sentido algum? Não importa. Se por acaso fizeram um dia, para os técnicos e marqueteiros que as bolaram, os destinatários da mensagem continuam no escuro. Pior ainda: é preciso e até necessário que continuem no escuro, pois essa linguagem espessa pirotécnica nada mais é que uma ferramenta de dominação. Cumpre o mesmo papel desempenhado pelo latim na missa católica ao longo de séculos: quanto menos entendimento, mais respeito. Implicância não é. O sistema Oxy Fresh do creme dental Close Up instaura um mundo em que somos passivos, burros, humilhados, excluídos. Até que uma porta, uma só se abre para permitir a nossa entrada; a da compra. Nada de latim, o império hoje é outro. Com triple action e a exclusiva tecnologia multiativa YZX Ultra Plus, só pode ser um império bom, não é mesmo?
(RODRIGUES, Sérgio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 jul. 2001. Domingo, p. 42)
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