quarta-feira, 19 de junho de 2019

Orquestras sinfônicas: uma metáfora revisitada

Por Carlos Osmar Bertero
Professor do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da FGV-EAESP. E-mail: cbertero@fgvsp.br

Poucos provavelmente deixaram de assistir à execução do Bolero de Ravel pela Filarmônica de Los Angeles, conduzida na gravação pelo então jovem maestro Zubin Mehta. Poucos administradores e consultores terão deixado de ler ou ouvir diversas referências às idéias de Peter Drucker sobre a orquestra sinfônica como modelo organizacional cativante por um conjunto de boas razões.

AS ORQUESTRAS ADAPTARAM-SE A PÚBLICOS CAMBIANTES, A NOVAS PARTITURAS E COMPOSITORES E AOS NOVOS ESPAÇOS EM QUE SE VEM FAZENDO MÚSICA AO LONGO DOS TEMPOS.
A orquestra exibiria naturalmente e desde a sua criação, anterior ao surgimento de grandes organizações empresariais, a harmonia, integração, facilidade de comunicação, esprit de corps, capacidade de colaboração e evidentemente "achatamento", pela eliminação de hierarquias, que as empresas estão tendo enormes dificuldades em adquirir nestes dias de competitividade acirrada.

Assim, as empresas estão carecendo de características que as orquestras possuem. Donde se infere que seria proveitoso que administradores e consultores se debruçassem mais detidamente sobre esse prodígio organizacional e passassem a imitá-la.
Aqui estamos diante de mais uma metáfora incompleta e apressada e necessitando de uma revisitação, a qual nos propomos a realizar com brevidade. Na verdade, a orquestra não se encaixa no estereótipo apresentado e sustentá-lo mostra ignorância dos problemas que uma orquestra enfrenta como organização e que a aproximam, ao invés de distanciar de muitas outras modalidades organizacionais, especialmente empresas.

Leia este especial artigo que compara a estrutura, o funcionamento e os desafios de uma orquestra sinfônica com o cotidiano das empresas.


íntegra:

Orquestras sinfônicas: uma metáfora revisitada


Carlos Osmar Bertero
Professor do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da FGV-EAESP. E-mail: cbertero@fgvsp.br


Poucos provavelmente deixaram de assistir à execução do Bolero de Ravel pela Filarmônica de Los Angeles, conduzida na gravação pelo então jovem maestro Zubin Mehta. Poucos administradores e consultores terão deixado de ler ou ouvir diversas referências às idéias de Peter Drucker sobre a orquestra sinfônica como modelo organizacional cativante por um conjunto de boas razões.

AS ORQUESTRAS ADAPTARAM-SE A PÚBLICOS CAMBIANTES, A NOVAS PARTITURAS E COMPOSITORES E AOS NOVOS ESPAÇOS EM QUE SE VEM FAZENDO MÚSICA AO LONGO DOS TEMPOS.

A orquestra exibiria naturalmente e desde a sua criação, anterior ao surgimento de grandes organizações empresariais, a harmonia, integração, facilidade de comunicação, esprit de corps, capacidade de colaboração e evidentemente "achatamento", pela eliminação de hierarquias, que as empresas estão tendo enormes dificuldades em adquirir nestes dias de competitividade acirrada.
Assim, as empresas estão carecendo de características que as orquestras possuem. Donde se infere que seria proveitoso que administradores e consultores se debruçassem mais detidamente sobre esse prodígio organizacional e passassem a imitá-la.
Aqui estamos diante de mais uma metáfora incompleta e apressada e necessitando de uma revisitação, a qual nos propomos a realizar com brevidade. Na verdade, a orquestra não se encaixa no estereótipo apresentado e sustentá-lo mostra ignorância dos problemas que uma orquestra enfrenta como organização e que a aproximam, ao invés de distanciar de muitas outras modalidades organizacionais, especialmente empresas.

ORIGENS E EVOLUÇÃO DA ORQUESTRA SINFÔNICA ATUAL

Seria interessante lembrar que a orquestra sinfônica não nasceu pronta. Como organização, comportou uma evolução histórica até assumir o tamanho, formato e características que hoje possui. A orquestra sinfônica atual é um produto do romantismo e do romantismo tardio. Seu início deu-se com pequenos conjuntos que vieram do barroco e, ao longo dos séculos XVIII e XIX, foram aumentando pelo acréscimo de instrumentos, o que levou também ao aumento da complexidade.
Nesse itinerário, ela foi se adaptando às novas condições de produção e execução musical. A música no Ocidente foi, durante muito tempo, abrigada por igrejas, conventos e mosteiros. Com a modernidade, surge uma nobreza de corte, e a música passa a ser produzida em ambientes cortesãos. É em grande parte o período barroco e o início do classicismo. Gênios como Mozart e Haydn em sua época eram socialmente mais próximos da criadagem que enchia castelos e cortes aristocráticos e jamais respeitáveis socialites como muitos dos maestros, cantores e concertistas contemporâneos da chamada música erudita.
Com as revoluções sociais e econômicas do século XIX, a música deixa as cortes e passa a ser produzida e executada para um público urbano. A urbanização traz consigo a burguesia que passa a produzir, executar e consumir música. Beethoven é geralmente apontado como o primeiro músico burguês, ou seja, a viver de sua música como um profissional. Compunha, tocava e cobrava ingressos de um público urbano para que suas peças fossem assistidas. Isso levou a ambientes teatrais, e não mais a salões ou a câmaras em palácios e cortes, e gerou o necessário aumento da orquestra sinfônica. Tocar em grandes teatros urbanos exigia mais instrumentos, maiores orquestras, que fossem capazes de gerar maior massa sonora. E, assim, chegamos à segunda metade do século passado e ao romantismo musical. Aqui se desenvolve a orquestra sinfônica que chega aos teatros e salas de concerto de nossos dias. Capaz de executar um repertório que demanda entre 40 e pouco mais de 100 instrumentistas. E, à frente de todo esse monumental gerador de decibéis, um maestro do qual não se falou até o momento. A razão é simples. Trata-se de uma profissão recente que só se consolidou no final do século passado.

A PROFISSÃO DE MAESTRO

Orquestras tocaram durante a maior parte de sua existência sem maestros. Eles se tornaram 
necessários à medida que os conjuntos aumentaram de tamanho e as partituras também ficaram mais complexas. Um compositor como Giuseppe Verdi não contava com maestros para reger suas óperas. Foi com Wagner que orquestras sinfônicas se tornaram conjuntos mais profissionais, com músicos recebendo salários e maestros integrando o conjunto.
Mas é curioso ver como este "intruso" gradativamente ganha espaço até se tornar um monarca absoluto, com poder de vida ou morte não apenas sobre as execuções, mas também sobre a carreira e o itinerário profissional dos músicos que tocavam na orquestra que regesse.
Lembro-me de uma conversa que mantive com o falecido maestro Eleazar de Carvalho. Pergunteilhe o que se deveria esperar de um regente assistente. Respondeu-me indagando se eu já não me tinha dado conta de que o pódio é um quadrado com um metro de lado e, portanto, lá só cabia uma pessoa. Toscanini era famoso pela sua autocracia, que não poupava sequer os solistas mais virtuosos, a quem costumava impor suas interpretações. Fritz Reiner era absolutamente irascivo com seus músicos e Georg Szell, embora um verdadeiro gentleman nos modos e no trato, não era menos autoritário e impositivo à frente da orquestra.

HOJE AS ORQUESTRAS TAMBÉM SOFREM O IMPACTO DE UMA SOCIEDADE EM RÁPIDA MUDANÇA, O QUE TRAZ CONFUSÃO, DESGOVERNO E CONTRADIÇÕES.

Como se pode constatar, o "cargo" de maestro conheceu também o seu itinerário até tornar-se o centro da orquestra e a sua peça de maior importância.
O que comentamos até aqui permite concluir que orquestras conheceram também suas mudanças em função do ambiente organizacional respectivo. Adaptaram-se a públicos cambiantes, a novas partituras e compositores e aos novos espaços em que se vem fazendo música ao longo dos tempos. Da intimidade dos salões e das pequenas capelas aos grandes symphony halls, que começaram a ser erguidos no final do século XIX e que deixam de lado a intimidade pela impessoalidade de uma sociedade urbana e de massas.

MUDANÇAS NAS ORQUESTRAS E NAS EMPRESAS

Se comparássemos essas transformações com algumas outras sofridas pela organização empresarial entre a primeira e a segunda revoluções industriais, talvez tivéssemos que concluir que orquestras e empresas organizacionalmente mais convergem do que divergem e que orquestras não constituem exemplo de excepcionalidade organizacional.
É necessário rever a concepção de que orquestras são lugares de harmonia, de onde o conflito está afastado. Na verdade, a orquestra é altamente conflitiva, exatamente como empresas e outras organizações. Se conflitos podem ser reprimidos por meio de procedimentos autoritários, como aconteceu durante o reinado dos maestros monarcas absolutos, isto não quer dizer que estes inexistissem.
Hoje as orquestras também sofrem o impacto de uma sociedade em rápida mudança, o que traz confusão, desgoverno e contradições. Se empresas podem perecer porque se apegam a produtos, mercados, tecnologias, formatos organizacionais e modos de gestão que não mais funcionam, orquestras igualmente padecem exatamente dos mesmos riscos. Orquestras podem apegar-se a repertórios que, por mais consagrados que sejam, acabam gerando um certo efeito de monotonia e repetição.
Poder-se-ia também refletir sobre certa arrogância que implica supor que a audiência deve ser suficientemente educada para que possa entender o que está sendo executado. Isso acarreta dar pouca ou nenhuma importância ao papel educacional que uma orquestra deve desempenhar nos dias atuais, particularmente com relação às novas gerações.
Como todas as organizações, orquestras carregam a marca do tempo de sua formação e do ambiente cultural em que nasceram. Orquestras sinfônicas são produto altamente diferenciado e sofisticado da arte musical desenvolvida na Europa entre os séculos XVI e XX. Sendo a Europa o berço da orquestra sinfônica, acabou transplantando-se com mais facilidade para regiões do mundo onde a cultura européia estava presente, quase sempre em terras colonizadas por europeus. Isso explica a presença de grande número de conjuntos sinfônicos nos Estados Unidos, Austrália e Canadá. Menor número na América Latina, onde a cultura européia acabou mesclando-se com a cultura africana e outras culturas indígenas, obrigando orquestras a partilharem o espaço musical com produções ligadas a culturas africanas e indígenas. O Japão é um caso intrigante. Japoneses não imitaram apenas tecnologias e modelos de produção industrial. Possuem hoje excelentes orquestras sinfônicas e conjuntos camerísticos sem pertencerem ao Ocidente.

SE EMPRESAS PODEM PERECER PORQUE SE APEGAM A PRODUTOS, MERCADOS, TECNOLOGIAS, FORMATOS ORGANIZACIONAIS E MODOS DE GESTÃO QUE NÃO MAIS FUNCIONAM, ORQUESTRAS IGUALMENTE PADECEM EXATAMENTE DOS MESMOS RISCOS.

A mesma explicação poderia ser encontrada como um dos fatores para o relativo declínio que orquestras sinfônicas vêm experimentando nos Estados Unidos. País com cerca de 1.600 conjuntos, contando com o entusiasmado apoio das comunidades respectivas, hoje não encontram a mesma receptividade em centros onde hispânicos, africanos e asiáticos passam a constituir porção significativa das populações. Essas etnias estão ligadas a culturas que nunca tiveram vínculos estreitos com a produção sinfônica.
Talvez orquestras sinfônicas, por mais sedutoras que possam ser e por maior paixão que despertem entre os amantes das músicas por elas executadas, podem estar irremediavelmente ligadas a uma cultura, uma sociedade e um momento histórico. A ninguém ocorreria adaptar as partituras de uma sinfonia de Mozart para que se adequasse ao gosto ou falta de gosto musical dos nossos dias. Como não seria imaginável que o movimento da eficiência e da produtividade decidisse pela conveniência de se reduzir a duração de uma sinfonia de Mahler e simplificar uma partitura de Wagner. Tudo isso implica ter que manter um formato, uma habilidade por parte de instrumentistas que são reconhecidamente pouco compatíveis com o tipo de vida e as motivações da maioria das pessoas que hoje vivem. Portanto, orquestras podem padecer de inflexibilidade e rigidez de mais difícil superação do que empresas e outras organizações.
A questão da harmonia merece também alguma reflexão. Durante muito tempo, empresas foram apresentadas como organizações oligárquicas e autoritárias. O mando era exercido por poucos e discricionariamente. À maioria cumpria obedecer e executar o que lhes fosse ordenado. Como nas empresas, as decisões eram da cúpula empresarial. Acionistas, conselheiros, diretores e alta gerência decidiam, e os demais obedeciam.
Boa parte do folclore e da retórica administrativa do final do século XX tem sido dedicada a proclamar o fim desse estado de coisas e a democratização empresarial com a emergência de estilos participativos, desenvolvimento de equipes, empowerment e tudo o mais. A realidade empresarial, todavia, demonstra que a empresa, enquanto oligarquia, desfruta de excelente saúde e ainda tem um longo e possivelmente próspero futuro diante de si.
Orquestras sinfônicas foram monarquias absolutas a partir do pódio, compondo-se com modelos de gestão que reforçavam o autoritarismo de regentes e administradores. Nos Estados Unidos, o modelo vigente até pouco tempo, e hoje em visível crise, era o de uma orquestra dirigida por um conselho que conseguia os fundos com os quais a orquestra se mantinha, oferecia generosas temporadas e contratava um maestro que acumulava as funções de regente titular e diretor artístico.
Dos músicos, esperava-se submissão e, nas grandes orquestras pelo menos, bons salários e boas participações em direitos autorais de gravações. No momento, o interesse por música erudita vem declinando. Esse declínio de interesse pode ser demonstrado também pela queda na participação dos discos clássicos entre as categorias da indústria fonográfica. Isso ajudou a aprofundar as dificuldades financeiras de muitas orquestras. Hoje se reconhece que a educação musical nos sistemas escolares deteriorou, com relação ao que era, num passado ainda recente, levando a uma geração musicalmente "deseducada". Reconhece-se a necessidade de um esforço para reconquistar essas pessoas. A audiência é hoje predominantemente formada de pessoas com mais de 40 anos.
Uma conseqüência imediata foi a maior participação de músicos na gestão de orquestras. O modelo europeu, especialmente das orquestras inglesas e alemãs, já envolvia participação de músicos há algum tempo. Algumas orquestras inglesas são cooperativas de músicos e, em diversas orquestras alemãs, a seleção de instrumentistas da orquestra e do próprio regente passam pelo crivo dos músicos.
Na recente decisão de se contratar um novo maestro para a Filarmônica de New York, pela primeira vez na história da orquestra, ouviram-se os músicos. A decisão foi contratar Lorin Maazel, que, aparentemente, não muito entusiasmado com estilos participativos de gestão, reafirmou a importância do diretor artístico na administração de um conjunto sinfônico. Em São Paulo, as escolhas dos últimos regentes, tanto da Orquestra Sinfônica do Estado como da Sinfônica Municipal, foram realizadas com consulta aos músicos. As dificuldades recentes têm levado a que se reveja o estilo de gestão de orquestras, especialmente das norte-americanas, que eram os exemplos mais acabados e durante muito tempo bem-sucedidos de oligarquia de comando administrativo com monarquia absoluta de regentes. Pode ser que isso sirva para algum paralelo com empresas.
Além do processo decisório na gestão da orquestra como um todo, como se passam as coisas na orquestra propriamente dita? Como se decidem estilos, interpretações? Como tocar no palco? Que papéis desempenham o maestro e os instrumentistas? Mais uma vez, o recurso à história nos auxilia.
De fato, a profissão de maestro consolida-se com a definição do papel de regente de maneira autoritária. O regente sabia mais do que seus músicos, vistos como pessoas apenas destras para executar seus instrumentos respectivos. Mas, por definição, faltava-lhes a real e necessária cultura musical. Essa o maestro apenas possuía. O regente definia-se, portanto, como o artista mais acabado e completo, capaz de penetrar a partitura e estabelecer contato estético com o compositor recriando a obra.

COMO TODAS AS ORGANIZAÇÕES, ORQUESTRAS CARREGAM A MARCA DO TEMPO DE SUA FORMAÇÃO E DO AMBIENTE CULTURAL EM QUE NASCERAM.

Nessa concepção, cada execução é única e singular. Mesmo na música ocidental, em que partituras detalham as partes de todos os solistas e instrumentistas, faz-se necessária a figura do regente. Apenas ele pode, com mão firme, conduzir centenas de instrumentos e vozes à maravilha harmônica da obra recriada em cada execução. Assim, a ele cabiam todas as decisões sobre como interpretar. Andamentos, ênfases, relações entre os diversos naipes, sutilezas emocionais que deveriam ser transmitidas ficavam à sua inteira discrição. Tratava-se de um processo decisório claramente top-down, em que aos músicos e demais solistas só restava a obediência.
Em gestão estratégica poder-seia fazer o paralelo de que só o empreendedor ou o chefe executivo possuem a visão do negócio. Dependendo da maneira de se olhar a gestão de uma empresa, poderemos encontrar muita semelhança. Na verdade, a estratégia enquanto visão implica que apenas o empresário ou o chefe executivo é "visionário", apenas ele possui a visão do negócio. Aos demais, compete alinharem-se e procurar tornar essa visão uma realidade. Mas apenas o empreendedor ou o chefe executivo de fato percebem que coisa maravilhosa é a estratégia por eles intuída. Como pode criar valor para clientes e acionistas, transformando não só a empresa, mas até o ramo em que se atua. Assim se justifica a clássica divisão entre estratégia e operações, cabendo ao empreendedor e ao chefe executivo as responsabilidades por estratégia. A operação vai para níveis inferiores e menos nobres. Igualmente se dirá que apenas o maestro, à semelhança do empresário, do executivochefe ou da administração de cúpula possui a "visão" do que deve ser a execução e a interpretação a ser dada a uma obra musical. Aos instrumentistas, cantores e solistas compete executar com precisão e competência.
O que muda hoje nas orquestras com o fim dos supermaestros? A resposta encontra paralelos nas mudanças pelas quais a sociedade vem passando e que atingem também o mundo da produção musical. Da mesma forma que hoje a mão-deobra nas empresas melhorou seu nível educacional e suas qualificações, também os músicos de orquestra não possuem mais o perfil do passado. São profissionais altamente treinados e a maioria deles com sólida formação, que transcende o conhecimento e as habilidades de executantes de seus instrumentos respectivos.
A maioria dos integrantes das orquestras sinfônicas profissionais de nossos dias conhecem teoria musical, estética, história da música, composição e regência. Portanto, a distância que os separa de um maestro não é comparável à de outras épocas. O maestro passa a ser percebido pelos seus músicos como um profissional que tem habilidades e competências diversas das dos músicos, mas os músicos possuem habilidades enquanto instrumentistas que o regente não possui. Trata-se de talentos complementares e que não se hierarquizam necessariamente como superiores e inferiores, mas simplesmente diversos.
Em princípio, abre-se o caminho para "decisões" compartilhadas entre regentes e músicos da orquestra. Kurt Masur, quando atua como regente convidado, costuma pedir à orquestra que toque e simplesmente ouve. Dependendo do que ouvir, decide se aceita ou não a interpretação da orquestra. Noutros casos, acha que convém dialogar e acordar uma interpretação. Processo decisório e relacionamento inimaginável noutros tempos.
Outro tipo de relacionamento tradicionalmente problemático é o de regentes com solistas de concerto, especialmente com o repertório romântico e pós-romântico. Concertos clássicos são concertos para instrumento solista e orquestra. Quando se ouve a maioria dos 28 concertos que Mozart compôs para piano, de fato, temos concertos de piano e orquestra, em que o solista e o conjunto orquestral atuam de maneira integrada e equilibrada, o que também se poderia afirmar de Beethoven e dos concertos de Brahms. O mesmo já não se pode dizer da maioria dos concertos do repertório romântico, em que o destaque dado ao concertista coloca-o quase sempre no primeiro plano, chegando muitas vezes à situação em que a orquestra acompanha o concertista.
Nesses casos, o que fazem maestro e regente? Pode produzir-se um choque de dois absolutos, com resultados potencialmente desastrosos para a execução. A história registra tiranos como Toscanini, que simplesmente não permitia que solistas interpretassem algo com o que não concordasse. O monumental Vladimir Horowitz, genro de Toscanini, e outro ego monumental, declarou que, quando tocava com o sogro regendo, não tinha alternativa a não ser obedecê-lo.
Mas é interessante observar que Zubin Mehta disse numa entrevista que, quando rege um concerto do repertório romântico, abstém-se de interpretar e decidir. Isto fica inteiramente a cargo do concertista. Mas o mesmo maestro não exibe a mesma submissão a cantores de óperas. Diz que a ópera é obra tão complexa que demanda mão firme no pódio para que tudo saia correto.

CONCLUSÕES

Orquestras sinfônicas podem oferecer as mesmas dificuldades de gestão e decisão que outras organizações como empresas ou hospitais, universidades e repartições públicas. Revisitar a metáfora da organização empresarial como orquestra permite que afastemos a ilusão de que possa existir uma organização perfeita ou modelar, já pronta, e que bastaria copiá-la para que os problemas organizacionais se solucionassem.
Infelizmente, não há organização perfeita, nem mesmo e muito menos orquestras sinfônicas. Elas são, como todas as demais organizações, marcadas pelo tempo e pelo ambiente que as circunda. Como empresas, elas comportam divisões de tarefas, níveis de autoridade, conflitos entre egos e papéis e evoluem no tempo. Essas coisas são verdadeiras nas empresas e igualmente em outros tipos de organização.
Se a visita desmitifica, por outro lado, mostra a realidade. E talvez seja preferível seguir o exemplo do Quixote que, ao perceber que a morte finalmente chegava, decidiu abandonar as fantasias de cavaleiros andantes e novelas de fidalguia para enfrentar, finalmente, a realidade, mesmo que não tão bela como suas alucinações.

LEITURAS RECOMENDADAS

BROWN, Malcolm. Malcolm Brown talks to the director of the London Symphony Orchestra. Management Today, London, p. 18, Jan. 1991.
IS the Symphony Orchestra dying? Time, Chicago, 12 July 1993.
KNOWDELL, Richard L. A model for managers in the future workplace: symphony conductor. The Futurist, Washington, v. 32, n. 5, p. 22, 1998.
LONDON'S orchestras on trial. The Economist, London, 13 Nov. 1993,
MINTZBERG, Henry. Covert leadership: notes on managing professionals. Harvard Business Review, Boston, v. 76, n. 6, p. 140-147, Nov./Dec. 1998.
PARASURAMAN, Saroj, NACHMAN, Sidney. Correlates of organizational and professional commitment: the case of musicians in the symphony orchestra. Group & Organization Studies, Newbury Park, v. 12, n. 3, p. 287-304, Set. 1987.
RODES, Nevin J. Marketing a community symphony orchestra. Marketing News, Chicago, 29 Jan. 1996.

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